Modelo de sandálias
Eu precisava convencê-lo de que os pés não foram feitos para serem bonitos.
Sinto os músculos da minha face se contraírem, quando ouço aquela inconveniente conversa: A primeira parte que olho é os pés.
E então eu pergunto: Pra quê?
Quando criança, sempre tive receio de mostrar os meus pés em público. Sim, eles nasceram tortos. Algo que só a genética explicaria, finos atrás, grandes na frente. Era como se os dedos estivessem em guerra, divididos em dois exércitos. E acima de tudo, o grande poderoso, Joanete, que com sua força inestimável, era capaz de causar dor em outros territórios, pois empurrava fortemente uma parcela dos dedos para o lado, enquanto o outro time seguia em direção ao lado oposto.
Em meio à guerra, os cascões sempre apareciam, uma vez que os pés teimavam em lutar descalços pelo chão áspero das ruas e praças por onde passavam, rachando a parte dura da polpa.
Enquanto isso havia uma parcela de meninas delicadas, não que eu não fosse, mas que tinham os pés mais delicados e macios, pés que viviam em harmonia dentro de castelos de algodão feito de meias. E então, a tentativa de esconder aquela monstruosidade era rapidamente fracassada pelo tamanho desproporcional de 1 metro e meio de altura para 25 centímetros de pé.
O meu rancor foi sendo amenizado quando entrei para uma escola de ballet clássico. Ali sim, encontrei pessoas que me eram familiares, me identifiquei; tinham os pés piores que os meus. Se os meus dedos estavam em guerra, aquela porção estava em estado de calamidade. Calamidade sim, porque além da desproporção e da genética completamente torta, agora puderam me apresentar e incluir no meu currículo as bolhas... E os calos.
Se tudo antes era difícil para a minha cabeça filhote entender, depois disso, não havia como controlar. Mas por um momento, uma rosa floresceu no chão áspero de ossos e peles rachadas pela guerra dos meus dedos, e uma música apareceu ao longe, fazendo com que aqueles briguentos times entrassem em harmonia no acorde. Transformaram-na, então, em dança. Pra que brigarem, se os exércitos com suas opiniões e lados diferentes podiam dançar magicamente? Comecei a entender que só era possível a dança que advinha da beleza monstruosa dos pés. E a beleza da dança tornava ainda mais os pés monstruosos. Era uma via de mão dupla. O fato é que, agora, se coreografavam encantos a partir das deformidades, rachaduras, e calos.
Os pés não foram feitos para ser bonitos, mas para criar boniteza.
Fui amadurecendo a sabedoria dos meus pés tortos, quando desvendei outra função que pude aplicar aos pés que não de modelos, a de curandeiro. Quando recebi uma massagem nos pés e descobri que eles existem simplesmente para nos fazer feliz. Conseguia curar as dores de todos os conflitos dos demais territórios, sua excelência era estratégica. O pé não é egoísta, e por isso tem outro igual. Quem nunca sentiu a delícia de ser tocado nos pés, nos calcanhares, por entre os dedos, na parte posterior, bem no meio. Ah, o meio... É a parte essencial do prazer.
Assim, ao longo da minha juventude puder entender dois pontos essenciais: a beleza e o prazer. Ambos não feitos dos pés, mas pelos pés. Os pés não são. Eles apenas ofertam aquilo que não podem ser, são nossos servos, jamais soldados de exércitos.
Então, resolvi ser grata aos times de opiniões e lados divergentes, bem como ao todo poderoso Joanete também, que me rendeu boas histórias pra contar.
Mas de uma coisa eu sei: nunca serei modelo de sandálias.