Que me pariu

Que me pariu

 

 

 

 

Canto sem ela no som do chuveiro, ela canta na igreja na fila da hóstia, lá fora há o homem fedendo a cachaça, vejo a chuva e o frio como a um bom companheiro, banana e cigarro tão na mão do meeiro, conto trocadinho todo o dinheiro, “de barriga vazia o amarelo é bílis”, tudo isso me lembra um esgarçado refrão, escrevo que nada espantando a aflição, ela comunga, abaixa a cabeça e o homem lá fora fritando a carcaça anuncia a folia, eu rio e me esqueço do que foi que pariu.

 

A Terra gira e não sinto, quando eu sorrio.

 

Ouço dela tanta bobagem, que me partiu, aprendo que quando se começa a viagem nada fugiu, carnaval vem da carne e fico quieto calado prestando homenagem, “de barriga vazia o vermelho é fúria”, escrevo que tudo que tudo distorce a questão, ela ajoelha e se ajeita enquanto o homem lá fora tropeça, lá dentro outro homem professa e tantas pessoas que seus nomes nem sei, vou de frente e de cima como cai a folhagem, vou de lado que nem cabotagem, eu choro e me lembro do que me feriu.

 

A Terra estremece e sacudo a poeira, quando eu sorrio.

 

Agradeço aos ouvintes cada tapa nas costas, que me caiu, o homem professa e o outro lá fora agoniza, carnaval vai na carne e ela ora baixinho, eu escuto e me esqueço do que foi que surtiu, no altar uma vela e um manto dourado, pessoas sem nome me dizem brigado, ela levanta se estica e olha lá longe, tudo isso me lembra um pobre refrão, escrevo talvez desprezando o bordão, nove horas não chega e nada alumia, ela sai se ajoelha, perto da pia, eu paro e antevejo, o que ninguém viu.

 

A Terra escurece e sinto um clarão, quando eu desvio.

 

Carnaval já passou e a carne ruiu, visto branco, saio e pergunto por ela, que sumiu, vamos nós na vontade ao som do aguaceiro, mais as lembranças saindo só do meu bagageiro, o homem lá fora canta e dança ligeiro, agora são cinzas que me colocam na testa, no altar uma vela e um manto caiado, sinto as cinzas na pressa de um dia raiado, será que ela reza pergunto amuado, foi nas cinzas que eu disse nem te vi coração: que me pariu.

 

A Terra gira e eu sorrio.



(Imagem: Sementes - Levon Biss)

 

 

 

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 03/03/2011
Reeditado em 31/01/2022
Código do texto: T2825917
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