ESGOTANDO O DELÍRIO
Há que se provar do fel até gastar, até as entranhas regurgitarem, botando tudo pra fora. Há que se provar desse engodo por tempo suficiente para que ele se auto- destrua, veneno tornado inócuo, e o lago da existência reste limpo e sereno, tendo sido esfacelada aquela alga que o consumia e empanava a visão do todo. Há que se provar, até o derradeiro gole, destes estados alterados transitórios pelos quais enveredamos muitas vezes, para que nos inteiremos da sua fragilidade, para que nos curemos da sua demência definitivamente, ou até a próxima ilusão. Urge deixar-se conduzir até que consigamos decifrar este enigma desenhado com as velhas tintas do (nosso) desejo em telas alheias, aparentemente ilesas, únicas, aonde a nossa vontade produz quase toda a singularidade atribuída ao Outro. Que como indivíduos podemos ser específicos, mas como espécie temos nos repetido à exaustão. . . É preciso arder até que a nossa percepção já não distinga mais entre a dor e o prazer ( como se um pudesse existir sem o outro). E tendo tido, finalmente, a pele curtida deste sol abrasador da paixão , o peito relaxado desta contrição sem fim, a alma de dia raiado finalmente desperta, deslizar novamente em águas conhecidas e amáveis. Assim, havendo esgotado até a sua última consequência aquilo que pairava sobre nós como faca de dois gumes e como atração fatal e presença sufocante, este algo que imaginávamos ser o que mais importava em nossas vidas, finalmente tomará suas verdadeiras proporções, ou melhor, será visto pela lente da razão,( excomungada e varrida oportunamente). Esta então, permitirá conhecer a verdadeira medida do que nos parecia gigante, insubstiutível. Do que nos fazia suspensos, como quem é içado por uma corda acima do chão e imagina que tem asas. Voltaremos assim sobre nossos próprios rastros para apagar lentamente, nesta degustação antropofágica e gradativa, as cores acrescentadas a uma paisagem banal, comum, pelo menos não tão rara quanto a nossa imaginação teria providenciado por fazer perceber. Um processo lento e gradual até que a depuração esteja concluída e a imagem do nosso campo de visão se apresente sem interferências de sonhos e carências que permitem estas viagens e investidas escapistas rumo ao Outro. Porque este, o Outro, tal como o vemos em delírios dessa ordem, não passa de uma projeção das nossas mais caras fantasias e desejos.
Esgotado o delírio, é hora de pisar terra firme e perceber que somos somente humanos, demasiadamente humanos e que isso pode não ser tão ruim, apenas falível, imperfeito, muitas vezes feio, incômodo, mas também pode ser sumamente prazeroso, desde que não se resolva tomar a frágil bolha de sabão entre as mãos possessivas. E que cada um é sozinho e responsável por sua felicidade. O outro é apenas um agente, um ser capaz de uma maravilhosa assessoria.