EU JÁ FUI UMA PESSOA LÚCIDA
Há muito, muito, muitíssimo tempo, há tanto tempo que me parece ter sido em outra vida, eu fui uma pessoa lúcida, ou me semelha, pela lembrança, que o tenha sido. Ao menos vivia em um mundo que me soava normal, com tarefas normais, com gestos normais com os quais me identificava, na medida do possível, ainda que eu nunca tenha deixado de ser a menina que, às vezes,quando tinha sete anos, costumava sentir-se, ao ver as outras crianças brincando, como um velho a recordar o passado.
Quando, em um dia também já muito longínquo, há mais de duas décadas, o Destino ou algo equivalente fez com que tu e eu nos conhecêssemos, a fina camada da minha lucidez, que eu não sabia tão fina, rompeu-se e, com tal rompimento estabeleceu-se sintonia “fina” entre as nossas duas respectivas loucuras, a terrível sintonia fina que nos fez estabelecer um pacto amplo e irrestrito, pacto não revogado até hoje em seus termos, com os gestos e tarefas que a Razão, desde os Tempos do Início, se recusa a nomear.
Tentei, tenho tentado, ao longo dos anos, trazer-nos de volta ao mundo dos gestos lúcidos. Em vão, sempre em vão, que não te interessa fazer pacto com a normalidade, ao menos no que se refere a nós dois: é o modo com que te vingas de mim, da minha deserção de nós em função de um outro, também por muitos anos, na tentativa desesperada e vã de sobreviver-nos, de sobreviver a nossa rua sem saída, de sobreviver a nossa loucura comum.
Em vão, sempre tudo em vão. Quanto mais partimos, mais ficamos; quanto mais ficamos, mais partimos. O tempo de partir, sempre o tempo de ficar. O tempo de ficar, sempre o tempo de partir.
Oh, Mundo! Oh, Galáxia! Oh, Vida! Oh, Morte! Oh, Eternidade! Nós continuaremos sempre assim, ad infinitum, assim, sempre estes mesmos que não sabem o que fazer de si, sempre estes de sempre os mesmos, para além de todos os Fins deste e de outros Mundos? É assim que nós, para sempre, continuaremos?
Na tarde de 28 de fevereiro de 2011.