A MOCHILEIRA (Thundra) V
A
"TURMA"
DE
MIRASSOL
Desperto dessas meditações com Regina esfregando unhas numa parte lateral da barraca e dizendo:
— Hei irmão, estamos saindo fora. Até outra vez. Foi bom te conhecer.
Levanto a cabeça do chão da tenda, enrugo a testa abrindo bem os olhos, num posicionamento mental de vigília PSI. A voz dela chega a mim como se vinda de lugar distante. Improviso uma resposta:
— Tudo bem, Regina, prazer em conhecer você, vocês, digo, ainda meio embaçado pelas reminiscências.
Abro o zíper da barraca, cabeça fora do vinco. Ninguém à vista. Hortênsia, Paula, Jonas, Faustinho , todos haviam descido. O tempo nublado. Regina, Helena, LC, Daniel ou JJ, todos se ausentaram.
Resta-me também descer a Pedra da Gávea. Seguir até a rodoviária e voltar para Sampa. Não sem antes tentar revê-la, saber onde se encontra a Mochileira. Se for possível.
Desço a Pedra na ansiedade de vê-la outra vez, mesmo intuindo a impossibilidade. Quantas respostas poderia obter. Prevalece a sensação de distância intransponível. Volto ao apartamento de sua amiga, Isa, em Ipanema. Nele havíamos pernoitado antes de botar o pé na Estrada em direção ao litoral.
Chego ao endereço às 21 horas. Aperto a campainha do apartamento. Um marmanjo, tendo ao lado uma velhinha de olhar indagativo, abre a porta. Cumpro a etiqueta da educação. A seguir, pergunto pela Mochileira, por sua amiga, pela butique. Nada.
O cara diz ter alugado o apartamento não faz quinze dias. Falo com o porteiro e depois com o zelador do prédio. Em lugar da butique, há uma loja de revenda de discos e fitas magnéticas.
— Saíram sem dizer para onde, explica ele.
— Nem bilhete com novo endereço? Um vizinho com quem tenham mantido relações de amizade, um telefone? Nenhuma pista a seguir?
— Sumiram, ninguém que eu conheça sabe pra onde, repete o porteiro.
Desejo desfixar o pensamento de sua lembrança. Sigo a pé até Copacabana. Compro ingresso para assistir a sessão das 22 horas de um filme chamado O Enígma de Andrômeda. Não consegui concentração bastante para formar opinião sobre ele.
Caminho até o Leme. Pago uma diária num hotel. Solicito da portaria que me despertem ao meio-dia, quando vence a diária com tolerância de uma hora.
Dia seguinte, após almoçar no restaurante da rodoviária do Rio de Janeiro, compro as passagens de volta para São Paulo às 14 horas. Tempo chuvoso. Chegarei em Sampa às 20. Viajo próximo a uma mulata, colírio de coxas, à Sargentelli. N. Sra. da Poltrona ao Lado, do outro lado do corredor.
Sobre seu colo oferecido, a presença de um rádio-gravador ligado. Uma fita magnética reproduz um programa de rádio com músicas de bandas de "rock" que estão na crista da onda. Traduzo os versos da letra da música Let it Be, na voz de McCartney:
“Na noite escura
Há uma luz que brilha em mim
Brilha até chegar a manhã
Let it Be
Desperto ao som da música
Mãe Maria vem a mim
Falando palavras sábias
Let it Be
Existirá uma resposta
Let it Be”
A associação de estímulos através dos sentidos, é igual para todas as pessoas, em qualquer lugar do mundo. Ao ouvir Let it Be, a memória associativa conduziu-me à evocação de acontecimentos em Parati, onde essa música também marcou presença num contexto mui significativo.
Na noite anterior à carona que nos conduziu ao Rio, no ônibus da equipe de filmagem dirigida por François Winwen, Amô e eu nos fixamos numa das mesas de um bar e restaurante ao ar livre. Elas estavam dispostas sob uma tosca armação de palha tipo cabana.
Das caixas de som provinha a musicalidade envolvente, que toda uma geração carente de afetividade (os filhos da guerra-fria familiar, política, econômica e social), consumiam como se fosse delicioso maná sonoro. E era mesmo.
Os Beatles representavam a contracultura na década de sessenta/setenta. Let it Be, o hino emocional de uma geração sem pai nem mãe, órfã de todos e de tudo. Até de si mesma.
A canção, letra e música representavam uma refrescante ducha de água fria no calor insuportável das tensões.
" When I find myself in times of trouble
(Quando me encontro em momentos difíceis)
Mother Mary comes to me
(Mãe Maria vem a mim)
Speaking words of wisdom
(Dizendo palavras sábias)
Let it Be
And in my hour of darkness, she is standing right in
(Em minhas horas de tristeza ela está firme)
Front of me
(Em frente a mim)
Speaking words of wisdom
(Dizendo palavras sábias)
Let it Be..."
Estamos nos comes e bebes de caipirinha de vodka com tira gosto de peixe frito, quando me ocorre perguntar:
— Amô, qual seu segredo? Por que você se ausenta da tenda sempre no mesmo horário, próximo as 22 horas?
A resposta, aparentemente simples, desnorteou. Desorientou-me, não apenas pela entonação (igual a da voz de Tânia) provocativa da frase:
— “Sentiu falta de mim, garoto?”
Uma repetição exata, à moda da pronúncia de Tânia, de sua intencionalidade emocional. A Mochileira se tocou de minha lividez e perplexidade. Hipnótica e didática, articulou algumas palavras da maneira mais impessoal possível. Como de praxe.
— "Há mais coisas entre o céu e a Terra do que pode imaginar a vã filosofia."
— Isto não responde minha pergunta, resisto, surpreso, mas afirmativo.
Criando uma situação evasiva, ela gorjeou à meia voz, os versos da letra da música ainda a repercutir, grandiloqüente, das caixas sonoras. Insinuou, desta forma, que os versos da canção seriam sua resposta:
“And when the broken hearted people, living in the world agree
(Quando as pessoas de corações partidos se harmonizarem neste mundo)
There will be an answer
(Haverá uma resposta)
Let it Be
For though they may be parted, there is still a change
(Embora estejam distantes ainda existe uma chance)
That they will see
(Que eles vão discernir)
There will be an answer
(Haverá uma resposta)
Let it Be.”
A tradução livre sugere que a gramática é menos pertinente do que a intencionalidade.
Desperto ao som da voz do motorista de ônibus que avisa: "Vinte minutos para o lanche". Sinto-me imigrante viajando em direção a maior cidade da América do Sul. Rumo aos shopping-center freqüentados pelos cibernÉdipos dos corações solitários.
Busco organizar as idéias. A cabeça à mil por hora. Preciso ordenar a percepção exata da seqüência dos eventos. Senão, a incrível riqueza de conhecimentos armazenada neste período de livre aprendizado no campus alternativo da Estrada, pode se reduzir ao pó da piração.
Em meu ciclo de amizade existem meia dúzia de pessoas com condições de honrar este modelo de know-how existencial. Os preconceitos vigentes dos membros da cultura sedimentada, do establishment ("Foudation"), são mais fortes do que as recentes experiências dos peregrinos da cultura alternativa.
Como pode haver diálogo entre os dois lados do "muro da vergonha?". De um lado se encontram as pessoas que aceitam todo tipo de despotismo, passivamente, sem nada questionarem. Ou questionando apenas muito superficialmente.
De outro lado, os pioneiros de uma nova mundividência. Antecipando-se às vivências das contradições de seu tempo. Vivendo-as, abrindo trilhas, isolados. Tendo de conviver e superar a ignorância e o desprezo da cultura estabelecida. O dogmatismo podre.
Neste momento, as frases do poeta simbolista Arthur Rimbaud (1854-1891), são como um bálsamo sobre as feridas abertas de minha ansiedade: O Poeta Torna-se Vidente Através de um Longo, Imenso, e Racional Desregramento de Todos os Sentidos.
Não com o objetivo de ser poeta ou vidente, ganhei a Estrada. Nem tampouco desregrei todos os sentidos por longo tempo. Mas as frases, um incentivo e um elogio àqueles que desafiam a própria fragilidade, frente a avassaladora intransigência das forças sociais pseudorganizadas, fornecem alento à minha mente. Ânimo à minha solidão.
O ônibus estaciona na plataforma 12. Sinto-me Estrangeiro. Imigrante a caminho de uma cidade do interior de São Paulo com quarenta mil habitantes: Mirassol. Filho pródigo, voltando às origens. Convém adaptar-me às leis que regem o ciclo do eterno retorno à mesmice da vã rotina. Aprendi muito sobre a inflexibilidade dos condicionamentos que regem a vida das pessoas.
Não apenas minha aparência está diferente. Posso sentir como meus cabelos longos, a barba por fazer, agridem as pessoas de aparência dita normal. Elas ficam afetadas com minha proximidade. As vibrações não se harmonizam. Que faço entre elas? Não vejo o mundo pela lógica simplista de seus olhos padronizados. A vida é mais que rotina, relógio de ponto. E uma poltrona frente ao "espelho mágico" da tvvisão.
Ser sonhador, Estrangeiro, não é fácil. Pessoas que hostilizam os poetas de uma geração, com suas atitudes depreciativas deveriam exercitar a autocrítica. Pensar nas frases de alguém que advertiu: "Não desdenhe dos nossos sonhadores. Suas palavras tornam-se os feitos da Liberdade."
Fico mais tranqüilo após estes pensamentos. Desembarco do coletivo na rodoviária de São Paulo. Do rádio de um passageiro soam os versos de uma das músicas de Boby Dylan: " As pedras do caminho/Deixe para trás/Esqueça os mortos/Eles não levantam mais/Um vagabundo esmola pelas ruas/Vestindo a mesma roupa que foi sua/.../Risque outro fósforo/Outra vida/Outra luz/Outra cor/E não tem mais nada/Negro amor. . . "
O locutor de uma tv ligada dentro de uma banca de revistas da rodoviária informa, dentro da programação do "Jornal nacional": "A frente fria no sul do país vai permanecer por toda a semana. Previsão do Centro Regional de Meteorologia e Climatologia do Estado de São Paulo, ligado ao Departamento Nacional de Meteorologia do Ministério da Agricultura e Reforma Agrária."
Sorrio: como são ridículos os locutores da prolixidade. Buscam transmitir aos tvespectadores uma credibilidade de faixada, de burocratas da informação ascética, institucional. Autoritária. Os nomes longos e pomposos. A afetação da ditadura transpirando pelo sangue e pelos poros do suor da nacionalidade. A censura e a repressão contaminando tudo. O câncer nacional, inconstitucional presente até nas formas de redigir as notícias.
Seguem informações sobre o projeto Grande Carajás, a usina de Tucuruí. O que os locutores não dizem é que a política de investimentos da ditadura em obras faraônicas hipotecou o Brasil até pra lá do ano 3000. Só Carajás e Tucuruí consumiram 35 bilhões de dólares. Os setores mais necessitados da sociedade, educação, cultura, habitação, permaneceram na indigência. Quem diria, no Brasil ainda hoje é dia de ditadura econômica.
Ônibus para Mirassol só amanhã. Estou na fila para pegar um "tx" até o hotel "Cruzeiro do Sul", próximo à estação ferroviária.
— Hei cara, é você mesmo?, a exclamação de Xico Gorgulho, braços estendidos em minha direção.
Na seqüência aproximam-se Márcia e Stela. Surpresa. A sensação de uma identidade especial entre membros de uma geração que viveu à margem da cultura oficial, os questionamentos mais atuais. Como se membros fôssemos de uma mesma orfandade espiritual, mental, parapsicológica.
— Que é que vocês estão fazendo neste pedaço de asfalto, indago satisfeito. As pedras rolam e se encontram.
— Cara, depois a gente conta, responde ele. Aqui é bandeira estar.
Abraços. Beijos em Márcia e na ex-amorada Stela. O carro de Xico, um Opala, está estacionado irregular na pista reservada aos "tx" que transitam pela rodô. Pode atrair a atenção e a ira dos canas, sempre de prontidão para reprimir com insana veemência, qualquer pequeno deslize da população civil.
Entramos no carro após firmar meus pertences sobre o bagageiro no teto do veículo. Disseram estar acampados até então, numa área de camping residencial em "Ubachuva". Um casal hippie ofereceu duzentos gramas de uma verdinha de boa qualidade. Estava na paranóia de pegar um bus, correr perigo de dançar com a coisa em cima.
— Presença beleza em troca da carona, diz Stela. Beleza pura, carinha.
— A Serena e o Vítor, disse Márcia, um casal muito legal. Tem de ver esse lado também, o da amizade.
— Normal, confirma Xico, cânhamo "xuxubeleza". Casal muito doido, "brother".
— Deve estar embarcando agora para a GB, diz Stela. Com mais de um "kg" na bagagem. Não é fácil.
— Tudo bem, torna Xico, tá envolto em folha de bananeira.
— Pra quebrar a maresia, justifica Márcia. Sem a bandeira da maresia não há flagra pelo cheiro.
— Pensou se os "hôme" dão um baculejo na mochila deles?, insiste Xico.
— Nem fala, advirto, isola, pra não azarar a moçada.
Paramos numa churrascaria na Bandeirantes, a caminho de Mirassol. Ninguém estava no rango. "Baixaram" duas cervejas e três conhaques. As idéias fluíram sobre as impresões e experiências da Estrada. Agora é a vez de um tira-gosto de queijo-prato e outro de contrafilé. A oitenta quilômetros por hora são seis horas de viagem. Forrar o estômago é preciso.
Afirmo estar vindo de uma peregrinação pelo Estranho Caminho de São Thiago do litoral fluminense. A referência Estranho Caminho de São Thiago se deve ao filme homônimo de Buñuel.
— Estás com cara de Luna Bar, Baixo Leblon, a insinuação dele é pertinente.
— Pintou uma girl no pedaço dele, incita Stela, renovou geral as emoções. Conheço a fera.
— Não encana, baby, afirmo, está chegando perto.
— Se você vem perto eu vou lá, desafia Stela. Ah a Estrada, nela a gente vê melhor como gira o mundo.
— Agora é dá um tempo na curtição, saca Márcia. A vida não é só litoral não.
— Estou contigo e não abro, replico.
Sobre a mesa Xico deposita um livro que há poucos momentos estava no bolso de seu jaquetão.
— Diário de Estrada? Indago.
— Este livro, ah, está "maus". Trouxe de cima do balcão de um bar. Li umas frases, gostei, tá comigo. Alguém "esqueceu" ele com essa intenção.
Não tinha nome da editora nem do autor. Folheei as páginas que restavam. Fixei a atenção nas seguintes frases: "Ah, voltar de novo a essa vida/Lançar os olhos sobre nossas monstruosidades/Este beijo/Veneno mil vezes maldito/Minha fraqueza/A crueldade do mundo/Piedade Deus/Ocultai-me/Não estou em condições de proteger-me." Abri o livro em outra página, li: “Sem dúvida sempre tive falta de fé na história/Esquecimento dos princípios/Silenciarei sobre isto/poetas e visionários ficariam enciumados/Sou mil vezes o mais rico/Serei avaro como o oceano.”
Li espontaneamente. Em voz talvez um pouco alta, a julgar pela reação das pessoas na mesa. As garotas beijaram-me como se fosse eu o autor dos versos.
— "Do caralho", cara, exclama Xico. Esse autor, não sei quem é, mas deve ter vivido a Estrada. Sentiu a barra de voltar para o mundo normal.
— Vamos "chegar" pessoal, alerto, o lero está beleza, mas as condições de navegação não estão nada fácil.
— São 450 km, lembra Stela, mais de seis horas de viagem.
— Esta garoa desce tranqüilo até amanhã, a garantia é de Xico. Pé na Estrada.
— Fosse só asfalto, tudo bem, lembra Márcia. Mas há o trecho de estrada de terra. Vamos colher cogumelos em Nova Aliança.
— Vocês estão mesmo fazendo a cabeça, digo exclamativo.
Todos sorriram a valer. Por quê?
— Para nós você estava na USP, cara, implica Xico. Tremendo careta. Discente de história e coisa e tal.
— Cabeça de idéias curtas, é a vez de Stela. Na rédea da academia, sabe como é?
— Minha avó já dizia, caretas, reajo com certo sarcasmo, "o gato ruivo do que usa disso cuida".
— Com pinta de mestrado e coisa e tal, reforça Márcia.
— "O bom julgador julga os outros por si", saquei.
— Legal que a gente errou na avaliação, Stela murmura, enquanto passa a mão no alto de minha coxa esquerda, beirando a genitália na ponta dos dedos.
De repente, não mais que de repente, pintou uma "larica" geral. Chamou-se uma "pizza" grande, um tira-gosto de filé e dois outros de azeitonas. Pergunto de mim para comigo: numa longa sucessão de eventos semelhantes, que número define a probabilidade de ocorrência desta coincidência?
Encontrar Márcia, Stela e Xico Gorgulho dirigindo-se para uma cidade de quarenta mil habitantes, no interior de São Paulo, a 470 km aproximados da Capital... Não é coincidência demais?
— A política cultural "tá maus", Stela fala com enfado. Os milicos estão a ferrar todo mundo. Os milicos representantes do "Reich dos Mil anos".
— Plínio Marcos, Dias Gomes, Neville de Almeida, reforça Xico.
— Até o porralouca do Cacá Rosseti está proibido, complementa Márcia.
— É pano de boca pra todo mundo que não banca a macaca de auditório da ditadura, argumento.
— Sem chance, Xico adverte: arte pra eles é trabalho de veado e comunista.
— O que tem de nego no desespero, rebate Stela, matando a família e indo ao cinema.
— É uma história de horror que não se vende nos gibis, afirmo. Eles são o modelo da política da corrupção a seguir. O resto da população são todos bandidos da luz vermelha.
— Puta filme, confirma Xico, só passa em circuito de fim de semana em museu. Vale a pena ver de novo.
Ele dirige o carro ao lado de Márcia. Estamos há duas horas na Estrada. A singela musicalidade da voz despretensiosa de João Gilberto se faz ouvir do "deck". Harmoniza as emoções: "Chega de saudade/A realidade/É que sem ela/Não pode ser."
A calcinha de Stela estala no meio das coxas.
"... A realidade é que sem ela/Não há paz..."
Ela repete, como se um clone fosse da sexualidade da Mochileira, movimentos eróticos contidos, suaves, que aumentavam a intensidade voluptuosa de meu membro no vaivém de sua xaninha apertadinha. Maravilha.
"...Não há beleza/É só tristeza/Melancolia/E essa saudade/Que não sai/De mim/Não sai..."
Seu corpo subindo-descendo de meu eixo carnal ereto. Epifania, epicentro. Libido fluindo, pianíssima.
"...Mas.../Se ela voltar/Se ela voltar/Que coisa linda/Que coisa louca/Há menos peixinhos/A nadar no mar/ Do que os beijinhos/Que darei/Na sua boca..."
Vagina, caverna mágica: delícia de sexo.
“...Que é pra acabar/Com esse negócio/De você viver/Sem mim/Que é pra acabar/Com esse negócio/De você/Longe de mim..."
— Gostoso, amor, Stela repete: delícia. Não pára. Não pára não. Assimmmm. Bommmmm. gostosooooo. Querido, aiiiiaiaiiiaiiii. Ahhhahahhh. Demaissssss. Ohhhhaaaanneeesss.
"...Que é pra acabar/Com esse negócio/De você/Viver sem mim..."
A serenidade da canção fluindo no ritmo das emoções, dos gritos, gemidos e sussurros. A substância seminal jorra longe dentro dela. Novos sentimentos fluem do prazer, do desejo: uma, duas, três vezes. Saciando a fome de querer, de viver, de desejar. Feelings fálicos, rumo ao interior universal, estelar, vaginal da mulher. Da fêmea Stela.
NO
VENTRE
DA
MÃE
BALEIA
"ED QUID AMABO NISI
QUOD AENIGMA EST."
De Chirico
Quarenta e cinco quilômetros, a distância que separa Mirassol dos pastos de Nova Aliança. Meia hora de carro, se tanto. Em plena região rural, o Opala começou a estancar. O sistema elétrico falha. As luzes dos faróis, faroletes e do interior do veículo minguam. De dentro de duas mochilas no porta-malas, são retiradas lanternas. Ao serem acionadas suas luzes cintilam por breve espaço de tempo, segundos, em seguida consomem-se por completo.
— Que merda é essa que está havendo? Reclama Xico irritado. Comprei as baterias hoje de tarde. As lanternas estavam funcionando normais.
— Estranho, "brother", comento.
— Olha o gado, é um pasto, Márcia fala um pouco apreensiva, vamos colher uns cogumelos.
Ela e Stela afastam-se em direção a uma duna. Apesar dos altos e baixos do terreno, ele estava coberto por uma longa esteira de grama. Pensei que fossem fazer xixi. Mas as duas ficaram de pé, imóveis, olhando fixamente para um sítio distante uns seiscentos metros aproximadamente.
A madrugada fria, o chão do lugar muito irregular. A presença de um tênue nevoeiro e a umidade do ar: os cogumelos deste pasto devem ser realmente um barato. O chão esburacado e escorregadio. Presume-se muita bosta de vaca. Lembrei da capa dupla do disco do Pink Floid. Stela e Márcia gesticulam, solicitam nossa presença. Querem que nos aproximemos mais.
— Vem aqui, ver daqui.
Chego junto dela, aperto sua mão estendida. Xico, chegando-se mais, atende os apelos de Márcia. Ficamos observando, fascinados, o piscar-piscar pulsante, hipnótico, rítmico, de luzes nas cores branca, amarela, vermelha, azul, negra e violeta. Um show de cores. Quase um arco-íris.
— Vamos chegar mais perto, convida Stela, parece um palco armado para um festival de "rock".
— Vai haver um festival de música aqui, satirizo, e a gente estava por fora.
Seguimos em direção das emissões luminosas pulsantes. Se de longe causavam tanto efeito, de perto, nem pensar, causariam muito mais. A sincronia com que pulsavam, exatamente simultânea, causa estranheza, aguça a curiosidade. Fosse o que fosse, gostaria de ver de perto.
De carro, impossível uma aproximação. Mesmo se o motor estivesse funcionando e os faróis acesos. Não há amortecedor que agüente rodar por sobre uma superfície tão desigual. Na grama molhada, os pneus deslizariam, a força de atrito semelhante a de um esqui em pista de gelo, se não atolassem nas poças de lama.
O fenômeno luminoso fascinante. Vale enfrentar a oposição da situação crítica do terreno. A princípio avançamos mano a mano. Quinze minutos depois Stela e eu apressamos o passo mais a direita, contornando uma larga fenda no chão. Márcia e Xico, com o mesmo propósito dirigiram-se pela esquerda.
— Mas que merda de droga de bosta de pasto, clama Xico irritado, vim me melecar todo. Devo estar de miolo mole. De bobeira nessa onda.
— Calma, cara, diz Márcia sem convicção, "take it easy". Apesar de todos os esforços não houve progresso no sentido de uma aproximação com o local das luzes.
— Essas luzes são apenas sinais de identificação emitidos por balão de pesquisas meteorológicas, exclama ele, com indisfarçável irritação.
Estava apenas esboçando uma explicação racional, dentro dos limites de seu padrão referencial. Esfregava com Márcia, o tênis na grama úmida, limpando a meleca em que haviam pisado.
— Gente, o carro ficou sozinho com "tudo em cima", Márcia advertiu. Arriscamos nos perder neste lugar.
— Estamos tentando há meia hora, ele exagera, sem conseguir nada. Vamos para o carro Marcinha, se acharmos o caminho de volta.
Desejo tanto como Stela vencer os estorvos do pasto. Não está nada fácil. Muito esforço e pouco progresso. De repente, um ruído estranho, como se alguém estivesse se aproximando, chapinhando em água rasa. Apressando os passos pesados, aproximando-se de nós. Pelo impacto do corpo estranho no solo, seu peso deve ser enorme. Se for hostil, estamos "maus". Medrei.
— "Pé de pato te esconjuro, mangalô três vezes", exclama Márcia, apreensiva.
Eles correm presumindo-se em direção ao carro. Súbitos gritos apavorados dela. Clamores espantados de Xico ambos perdem o equilíbrio, batem de encontro aos corpos de animais no pasto, caíram de costas na grama próxima ao corpo dissecado de uma rês.
Na cabeça do quadrúpede um orifício perfeitamente redondo, da dimensão um pouco maior que uma bola de gude. Das vísceras do animal e ao redor, se faz sentir um forte odor de enxofre. Não havia nada dentro dela, como se o conteúdo total do cérebro, as partes anterior e posterior do encéfalo tivessem sido extirpadas. Vários palitos de fósforos foram acesos e dirigidos ao interior da cavidade craniana do bovino. Estava ôca, e suas vísceras secas. Como se todo seu sangue tivesse sido drenado.
O animal não foi vítima de nenhum predador, que havia chupado com canudinho o conteúdo craniano dele. A dissecação fora efetuada com instrumentos cirúrgicos para estudo dos órgãos de sua anatomia. O que houve foi uma retalhação anatômica.
Stela e eu apertamos as mãos, estávamos desnorteados. O que quer que esteja havendo, tínhamos de sair fora do local o mais depressa possível. Na pressa de nos afastar, pisarmos de mau jeito numa reentrância do terreno, por pouco não repetimos a cena de Márcia e Xico.
Mantivemos a postura involuntariamente apoiada no dorso enorme de uma besta castanha, prenha. Pelo volume da barriga, prestes a parir. Nervosa, batia ininterruptamente os cascos traseiros presos, por uma escassa corda amarrada na parte inferior das pernas, numa poça de água barrenta. Talvez estivesse em pânico por causa das luzes. Passamos as mãos por suas costelas proeminentes, agradecendo desta forma, o providencial apoio de seu lombo.
O animal acalmou-se um pouco. Nós também. O ruído dos pesados passos, agitando tenebrosamente a grama molhada, fustigou os ânimos exaltados. Teria sido apenas impressão? O som dos cascos na poça de lama muitas vezes ampliado devido aos efeitos de nossos inconscientes excitados? Por pouco não perdemos o controle e berramos, como o casal amigo. As pulsações luminosas prosseguiam à distância.
Stela está desolada, oprimida, decepcionada. Seguramo-nos as mãos, voltamos. Poucos passos depois, um grito apavorado de Márcia ecoou à pequena distância: "Huuuuaiiiaiaiaiaiiiii".
Dois pássaros, em vôo transversal rasante, cruzaram-se próximos às nossas cabeças. Voltaram em seguida em sentido contrário, insinuando-se em manobras de vôo, à nossa volta.
O Falcão ("Falcus peregrinus"), da esquerda para a direita. A Coruja, em sentido inverso. Numa atitude instintiva de defesa, levanto os braços sobre a cabeça. O olhar permaneceu atento. Humilhante admitir, mas, apesar de serem apenas duas pequenas aves, provocaram medo, senti-me ameaçado.
Avaliando a situação, um sentimento de vergonha. Contribuiu para isto a surpreendente audácia e hostil impetuosidade das aves. Elas agiram como se fossem guardiãs avançadas de um território que estava sendo profanado por intrusos: nós. Não nos forneceram nenhuma possibilidade de defesa com seu ataque de surpresa.
Mesmo por que, que intenção teriam de nos molestar? Que poderiam um Falcão e uma Coruja contra nós? Do ponto de vista psicológico, causaram grande impressão. O Falcão afastou-se emitindo trinados intermitentes, como que fazendo eco a uma seqüência de pios desferidos pela Coruja.
A repetição de sons harmônicos de diversos timbres impressionou pela sensação de que ambas as aves, ao se distanciarem, transmitiam impressão de grande regozijo, resultado de satisfação, contentamento, com os sobressaltos provocados por suas intervenções de surpresa.
Novos gritos de assombro se fizeram ouvir. Xico berrou de raiva, como se reprovando o excesso de excitação de Márcia. Com seus berros, conseguiu suavizar as próprias tensões. Corremos em direção a eles. Xico puxava a namorada pelo braço, tentando afastá-la da proximidade de um rabo de vaca que se movimentava de um para outro lado do próprio lombo, roçando a cara de ambos.
Tensa, ela relutava em sair do lugar. Os pulsos dobrados em direção aos lados do corpo. Mãos apertadas, dedos duros, como se fossem "flaps" aprumando a postura, braços na vertical, tensos e rígidos.
Observando a cena, começamos a sorrir. Passada a surpresa inicial, Márcia e Xico também sorriam. Algo estranho está acontecendo aqui. Nenhum de nós com disposição de ficar para saber o quê. Chega de imprevistos e de sobressaltos. A nítida intuição de que é preciso sair do lugar. Paranóia, talvez. A idéia de que alguém está seguindo a gente.
Tateando pelo caminho de volta, paramos em seguida. Um eqüino aproxima-se a galope, sem montaria, a trotar em nosso redor. A crina ondulante de uma égua branca, prenha, agita-se como se fosse uma longa cabeleira seguindo o compasso rítmico do galope. A visão, demasiado surrealista: as patas pisoteando a grama, no movimento alternado do galope pareciam progredir em câmera lenta, sulcando o chão na diagonal do trote.
Distante uns doze metros , nos contornava em círculos. Mantinha-se em nossa vizinhança, apesar do gênero "equus" ser arredio à proximidade do gênero humano. Antes de completar três voltas, o Falcão pousa sobre seu dorso, de lado, ficando de frente para nós, a princípio, agitando as asas, como se estivesse com dificuldade de manter-se equilibrado cavalgando.
Para nosso pasmo, seu corpo hirto fixou-se em segurança, enquanto a fêmea do cavalo diminui o ritmo do trote, para logo depois, contendo-se, virar o corpo e começar a trotar na direção inversa aos movimentos de um ponteiro de relógio. Agora vem juntar-se ao Falcus, a Coruja, dando uma de "amazonas", equilibrando a parte posterior de seu corpo no lombo do Falcão.
Os dois pássaros conseguem manter-se perfeitamente ajustados ao galope, no dorso do belo exemplar eqüino. A impressionante beleza surrealista da situação ímpar, de excêntrico, excepcional adestramento, prosseguiu por mais três giros de 360 graus. Três perfeitas circunferências a nossa volta.
Depois delas, arfante, inclina o longo pescoço para baixo e para os lados. Escouceia o ar aos pinotes. Parece esforçar-se, com inútil bravura, por retroceder. Os pássaros voam. A atitude do eqüino, de desesperada resistência e oposição direcional, após algum tempo é vencida. Os pelos molhados pela tênue neblina e pelo suor do esforço físico realizado sob tensão, contra sua vontade. Convence-se afinal, da insensatez de seu intento: retorna, resfolegante, à direção sugerida pelas aves, na velocidade de galope.
Seu dorso grande grávido, reluz como nuvem branca na paisagem da neblina em direção às luzes pulsantes. A Coruja e o Falcão seguem-na voando em círculos, a níveis flutuantes de baixa altitude. Posicionam-se em pleno vôo na parte posterior do animal, como se a dirigir, escoltar a força de seus músculos cervicais e dorsais. Conseguem, de maneira admirável, corrigir seus desvios de percurso.
Revelam-se hostis. Emitem ruídos guturais de agressiva sonoridade. Investem a fragilidade de seus pequenos corpos contra as magníficas potências musculares, desproporcionais a seus respectivos tamanhos.
Os pássaros conseguiram intimidar também nosso ânimo. Produziram certa apreensão. Cisma. Presumem-se perigos potencial e real. Se resolvessem nos acossar, agindo de modo semelhante para conosco?
Tentassem nos impelir, obedecendo a algum comando remoto, extrasensorial, em direção ao fenômeno luminoso? A poucos instantes estávamos dele querendo nos aproximar. Agora, distanciarmo-nos o mais depressa possível.
Enquanto guiavam o eqüino, as aves conseguiam pairar a pequenas distâncias do chão, examinavam o ambiente e as próprias ações, como que a se vigiarem mutuamente. Nada disso é característico do comportamento da espécie a que pertencem. A Coruja possui dificuldades em manter-se adejando. A pequenas altitudes, não é característica do Falcão a mesma performance.
Uma experiência visual inesquecível. Provocou grande estranheza a disposição das aves de guiar a égua na direção do evento luminoso, impulsionando-a a adentrar-se na região de neblina mais espessa, contra a vontade do instinto animal fogoso, obstinado em fornecer resistência.
Nem o MIT está em condições tecnológicas de criar um desempenho artificial tão perfeito em máquinas que simulem a aparência de animais de Inteligência Artificial Superior (robôs), seres mecânicos dissimulados: pedestres ou alados.
— Tá esquisito "brother", Xico apressa o passo. Vamos sair fora daqui depressa.
Quase a correr, Márcia busca, alternando-se com ele, tomar a dianteira. Revezam-se, ansiosos por sair do lugar, movimentando-se com rapidez, aos borbotões. Tropeçam um no corpo do outro. Perdem o passo e caem, ora ela, ora ele, alternando-se nas quedas.
Apesar de uma possível "espada de Dâmocles" pairando sobre nossas cabeças, não consigo conter os sorrisos. A associação com as personagens do curta-metragem de Polansky, Os Mamíferos, lembrou a situação cômica de humor negro. O casal Márcia e Xico estava realmente perturbado. Stela e eu, idem. Sentíamo-nos, não sem motivo, ameaçados por uma possível nova seqüência de ocorrências imprevisíveis.
Pouco depois, confirmando a projeção mental e emocional de nossos temores, se faz ouvir, outra vez, o mesmo chapinhar pesado, agressivo.
Acreditamos, na primeira vez, que esta manifestação tivesse sido produzida pelo impacto dos cascos da égua castanha, na depressão natural do charco. Estas impressões somavam-se às vibrações anímicas de nosso inconsciente excitado. Tememos que, desta vez, fomos "pescados", como peixes numa tarrafa.
O chapinhar na grama úmida, logo em seguida transformou-se em pesados passos ameaçadores. Aproximava-se a breves intervalos de tempo, aos saltos. Seja o que for, estava nas imediações. Próximo. A nos espreitar. Pode ainda estar. Sabe-se quando se está sendo ostensivamente observado.
Talvez a coisa estivesse buscando um ângulo de ataque favorável, a partir do qual nossa possibilidade de defesa fosse ínfima. Paranóia. O atrito de seus saltos fazia tremer o chão ao redor. Observo a acentuada lividez da pele de Márcia e Xico. Um misto de temor mescla-se ao cínico estímulo de sorrir. Stela e eu poderíamos, do ponto de vista deles, estar a espelhar uma aparência de palidez semelhante.
Os "prodígios" do pasto em Nova Aliança nos afetavam e iludiam de maneira uniforme.
Para onde correr? Podem peixes fugir de uma malha de pesca espessa? Estamos numa arapuca alienígena: se formos abduzidos? A idéia não é fantástica tanto quanto possa parecer. Apesar das estatísticas de abdução não serem divulgadas por instituições oficiais, existem muitos depoimentos de abduzidos que foram libertados.
Minha ansiedade está no limite do pânico. Correr, nem pensar.
Seríamos presas fáceis numa corrida em campo aberto. E se fossem dois ou três agindo de forma sincronizada? O "fog" está a adensar-se.
Na expectativa de que pudesse acontecer uma agressão, mal podemos identificar um bípede (ou quadrúpede?), a uns doze metros à nossa esquerda. Pelo que vimos, de relance, somando-se à rapidez do animal, braços curtos, a altura, o peso, a cínica expressão risonha, aos pulos, chegou-se à conclusão de que "aquilo", "aquela coisa", só poderia ser um Canguru.
"Passou batido", distanciou-se para alívio geral, como quem conseguiu seu objetivo. Qual? A tensão passou após longa transpiração. Alívio. A ausência de estímulos ambientais discriminativos, prenúncio de um possível acontecimento desagradável, temível. Trouxe consigo um sentimento de gratidão provisório, por quem quer que fosse responsável pelo conjunto de eventos inusitados.
Permanecemos sujeitos às influências organizadas e dinâmicas desse campo de força. Ele prossegue interagindo sobre nossas percepções. Suas influências poderiam evoluir de meras encenações pitorescas, com a atuação de animais nem sempre inofensivos, para uma ação de alcance e intensidade imprevisível, traumatizante.
Negócio agora é sorrir de nosso medo e fragilidade. Está divertido, até tensões divertem. Mas não vale a pena comprar ingresso para assistir à próxima atração desse programa de mistificações inusitadas. Está claro que estamos sendo observados. E se alguém que nos observa cismar que servimos para ser treinados como novos personagens de um circo alienígena?
Apaziguados os ânimos, matutei de mim para comigo, tentando fazer as contas com números inteiros: que faz um mamífero marsupial, encontrado apenas na Austrália e na Tasmânia, aos pulos, num pasto de gado em uma cidade do interior paulista com pouco mais de quatro mil habitantes, há 26 mil quilômetros de Sidney, Austrália?
Chega de surpresas. Apressamos o passo no caminho de volta. Apreensivos. Hesito crer em ter visto um Canguru a 16 mil milhas de seu habitat natural mais próximo. Estou mais tranqüilo. Acredito ter saído da zona de maior turbulência psicomagnética que influenciava nossos sentidos.
Surpreendentemente Xico entra numa de negação compulsiva do fenômeno visual:
— Aquelas luzes são faroletes de localização ligados a um balão de pesquisas. Propriedade da marinha ou da aeronáutica. UFO é alucinação de maluco. Provocada por anseios reprimidos do inconsciente coletivo.
— Foda-se Jung, reajo: e quem mais acreditar nessa baboseira. Você está por fora, bicho, não acredita nem no que seus olhos vêem.
— O próprio Jung negou esta afirmação inconseqüente, permeia Stela, em resposta à insinuação de Xico de que estávamos todos a delirar.
— Se não posso acreditar em meus sentidos, comento, não sou confiável nem a mim mesmo. Meus sentidos são meu elo com a realidade. Confio neles. E você: sai dessa de esquizofrênico.
— Aquilo é real ou não, cara?, desafia Stela irritada, dirigindo-se a ele, olhando nos olhos.
— Não adianta entrar numa de São Tomé, é a vez de Márcia. Não são faroletes coisa nenhuma. Não sei o que é, mas está lá, posso ver. Tá de porre, cara?
— É como dizer que estão queimando uma roça, Stela está aborrecida. Você não vai conseguir tapar o sol com uma peneira. Olhem.
Ela aponta o carro. Aproximando-se dele, Xico deu-se por vencido. As evidências, muito mais fortes do que sua impertinente negação. Os cogumelos foram esquecidos. Meio ressabiado, legitimou a estranheza visual dizendo:
— Tudo bem, pessoal, vocês venceram. Essa coisa é mesmo anormal. Desculpa moçada, não sei como explicar minha reação.
— Você não está sozinho, digo, conciliativo. Os cientistas da NASA estão na mesma situação.
— Isso aí, carinha, reforça Stela. Você não é bobo de acreditar na opinião oficial de que UFOs são apenas distorções visuais tipo refração do brilho de Vênus, balão de festa junina, distorções provocadas por "inversões térmicas".
— Basta olhar pra vê, balbucia Márcia. Não é avião, nem o super-homem, helicóptero, farol ou nuvem refletindo as luzes da cidade. Não é meteorito nem planeta.
— Nem uma suruba entre Bat-Man e Robin, sorrisos.
— A mente é como pára-quedas, afirmo, só funciona quando aberta. Veja: não é Marte, Vênus nem "atmosferas de Menzel".
Só agora lembro do binóculo. Ele pode permitir uma observação mais nítida das luzes pulsantes. Devem ser quatro horas da madrugada. Aqui está ele na mochila. O Opala na mesma, sem motor ou bateria. Fixo as lentes do instrumento ótico no fenômeno luminoso e exclamo:
— Incrível, pode ser a mesma origem das outras esferas. Como é que pode? Difícil acreditar.
— Que esferas, cara? Indaga Xico. Passo a luneta, todos querem ver.
Fiquei pensando por momentos no que vi agora, aqui. Lembrei da mímica da hippie grávida na praia das Neves. Ela buscava simular com os dedos das pequenas mãos bem abertas, o tamanho da circunferência das bolas a cores que haviam visto: ela, o namorado e um acompanhante. Sua versão do fenômeno estava sob o calor da passionalidade, impressionada porque um dos globos, separando-se por momentos dos demais, havia sindicado seu ventre.
Pelo binóculo observei, há pouco, várias esferas a cores entrando nos retângulos luminosos pulsantes. O tamanho lembrou o gestual da mulher explicando a dimensão das bolas a cores. Seriam sondas de exploração ambiental? Pela descrição dos hippies na praia das Neves, estas devem ser iguais, ou muito semelhantes, aos globos que eles viram.
Estranhei Márcia a caminhar de costas, apressando-se, como se querendo afastar-se rapidamente de alguma coisa estranha que dela se aproxima. Xico, que estava de cócoras, impulsiona o corpo para trás e para o lado em que se apóia numa das mãos, como se desejasse sair correndo em direção contrária ao pasto.
Stela, que há momentos havia me devolvido o binóculo, surpresa, grita para mim, apontando em direção à pulsação das luzes. O que vejo imobiliza-me. Não há nada a fazer. Sair correndo, para quê? Não há defesa possível.
Imensa nuvem, guardo a impressão da cor âmbar, aproxima-se veloz, imergindo a todos em seu ávido turbilhão: nos abocanha. Apodera-se de tudo em seu trajeto inexorável. Engole-nos como se fosse a arcada de uma formidável baleia. Estamos dentro de seu ventre.
O
INCRÍVEL
PODER
DE
FASCÍNIO
DOS
"BUTTONS"
Três semanas depois Stela telefona. Combinamos ir até a casa de Márcia, às 20 horas. Os pais dela estão viajando com seu irmão menor. A residência está por conta da família do caseiro. A casa principal, lugar perfeito para um brainstorming.
— Há uma coisa que Xico quer dizer. Ele acredita que devemos todos saber.
— Claro, vamos trocar idéias. Também tenho coisas a dizer. Você?
— Sim, acho que sim, todos temos.
Mais tarde, na casa de Márcia, estamos dispostos a avaliar a experiência incomum. Agora é aprender a conviver com isso. Após meia dúzia de latinhas de cerveja, não conseguimos entrar no lero central da reunião. O motivo pelo qual estamos reunidos permanece subliminar. Nada das palavras acontecerem. Um clima de singular inquietude aos poucos se estabelece. Uma sensação de mal estar. Márcia vomita. Xico ameaça vomitar.
Paramos com a cerveja ou a vomição pode ser geral. Ninguém entra no assunto. Súbito, Xico diz que anota locais e a quilometragem percorrida entre eles. Desta forma mantém o motor do carro regulado visando um consumo mínimo de gasolina.
Gaguejando, consegue dizer que no tanque do Opala havia mais combustível do que deveria haver, e que o velocímetro do veículo mostrava apenas um número: seis. Pergunta se alguém sabe explicar isso.
Por que os relógios estavam parados às quatro horas? Ficamos no pasto em Nova Aliança pelo menos uma hora. Havia um paradoxo de tempo e outro de quantidade de combustível. Chegamos ao consenso de que realmente houve um contato. E que, toda vez que desejamos lembrar dele, nada mais conseguimos do que uma forte dor de cabeça. Fumar maconha e biritar, agora causam mal estar e vômito.
— Algo mudou em nosso organismo, palpita Stela. Conseqüência do contato.
— Vamos manter essa história entre a gente, pondera Xico. Não quero ser estigmatizado como parte do grupo de malucos que viu um disco voador.
A ignorância das pessoas sobre este assunto é reforçada pela postura oficial dos governos. Há consenso também quanto a isso.
— Melhor ficar "na moita", insiste Márcia. Não vamos divulgar esse contato.
— Se alguém mencionar minha participação, confessa Xico, digo ser piração de quem falar.
— Nessa história de ufologia, comprova Stela, vai ser um deboche geral. Infelizmente é assim que acontece.
— "Os malucos que viram o disco voador", sem essa, ironizo.
A reunião está terminada. Hesitei em contar sobre meus estranhamentos no período de convivência com a Mochileira. Porém, ao ver o estado de desbunde e ansiedade do grupo, optei por dividir com ele, as impressões e sentimentos que desejava manter meus, apenas.
Comecei por contar porque, perplexo, exclamei no pasto em Nova Aliança, ao fixar com a lupa o evento luminoso: "Incrível, pode ser a mesma origem das outras esferas. Como é que pode. Difícil não acreditar".
— Vocês decidem se há alguma relação entre o que aconteceu em Nova Aliança e minha experiência anterior, quando em companhia da Mochileira.
— Estás blefando, mano, deprecia Xico. Corta essa de "suspense". Não vai querer dizer que há novidades.
— Seria mesmo demais, intervém Stela: sou toda ouvidos.
— Estou pagando "pra ver", desafia Márcia.
Do encontro com os hippies na praia das Neves, passei à narração de meu primeiro contato, e a subseqüente convivência com a Mochileira.
A síntese de minha história exclui os momentos de maior dramaticidade. Os mais inverossímeis, não mencionei. Sobre os incríveis eventos vividos no planalto da Pedra da Gávea, silencio.
Como encontrar palavras para explicar a complexa magnitude do acontecimento mitológico? A sensação de ser um grande pássaro, planando a centenas de metros do solo, entre correntes de ar de altitude? Diriam ou pensariam que pirei. Quem poderia, em sã consciência, acreditar numa experiência tão fantástica? Desconfio que o atual nível de racionalidade sapiens não passa de mero mito.
Se contasse a metamorfose, não poderia censurá-los por suas dúvidas quanto à minha sanidade. Julgo os outros por mim. Se algum deles me contasse uma história dessa, como poder crer em sua veracidade? Da "parábola do povo do outro lado do rio", faço um sucinto resumo. Mencionei Thundra. Nada de específico, generalidades apenas.
Ao final da narrativa (eles me ouviram atentos), disse que a Mochileira desceu a Pedra da Gávea enquanto eu dormia. E que não a procurei depois de me sentir rejeitado por ela.
— Você não trocou nenhum figurinha? Camiseta, lembrança, qualquer coisa.
Em resposta, abro uma pequena sacola, tiro de dentro dela e deposito sobre a mesa dois pequenos "buttons" e três conchas marinhas, dizendo:
— Não é muito, argumento, mas é melhor do que nada.
Os dois "buttons" chamaram a atenção. Um deles, de simbologia de fácil identificação, reproduz a imagem de perfil de uma Coruja dorso a dorso com um Falcão. O símbolo impresso no segundo "button", ninguém faz idéia do que significa. Simplesmente desconhecido. Inexiste referência visual anterior.
As relações funcionais entre atividade psicológica e experiência visual Coruja/Falcão, não se estabeleceram imediatamente. A memória resistiu em lembrar a beleza surrealista evidente da seqüência de cenas das quais participaram a égua prenha branca e os pássaros.
Concluímos, algum tempo depois, que houve um estímulo hipnótico a bloquear a lembrança das percepções, sensações e idéias provenientes de nossa experiência no pasto de Nova Aliança.
Houve perturbações visuais e digestivas. Dores de cabeça intermitentes, mas que em poucos dias cederam, felizmente, substituindo-se por sonhos que, a princípio tinham a animosidade visual de pesadelos, medos, conflitos.
Foram precisos alguns dias mais para que nossa memória pessoal e coletiva do evento do pasto voltasse ao normal. Quase nada conseguimos lembrar dos acontecimentos. Os que sucederam ao envolvimento do grupo pela imprevisível, inesperada, repentina nuvem âmbar, que nos tragou como se fosse o boqueirão de uma baleia descomunal. Quanto tempo permanecemos em seu ventre?
Stela mostra-se fascinada pelos "buttons", mais que Márcia. Pelo "button" do símbolo Estranho, principalmente. Ao vê-lo pela primeira vez, na noite da reunião, exclama extasiada: "Como é belo este signo". Enquanto carinhosamente o afaga entremãos
Nenhum de nós tinha visto sua representação visual em outro lugar.
Por dias fizemos exaustiva pesquisa. Resultado nulo. Não serviu de símbolo em feiras hippies, nem de logotipo para conjuntos musicais. Nenhum movimento ecológico ou político reivindicou seu uso, dentro ou fora dos limites da cultura alternativa. Nenhuma referência religiosa, impressão em selo ou numismática.
Márcia e Stela reproduziram-nos muitas vezes. Desenharam a simbologia dos "buttons" com surpreendente dedicação, devoção, se não exagero. Fizeram esboços com lápis de cor, nanquim, bico de pena, tintas acrílicas e pinturas a óleo. Tal compulsão em desenhá-los beirava o fanatismo.
Irritado com tão exagerada concentração pictórica, meu juízo crítico maneirou a intensidade de minha censura, ao contemplar a indiscutível qualidade de algumas pinturas produzidas a partir do original dos signos embutidos nos "buttons". Havia a misteriosa presença de um profundo sentimento feminino essencial, invisível. Transcendente.
Vendo essas telas, aprendi que a arte é uma porta que se abre à percepção de uma Antigüidade vitalizante. Uma metáfora de infinitas variações com o propósito de orientar a humanidade no sentido de manter-se muito acima da compulsão cromagnon sapiens/demens que dormita sobre o ilusório e esplêndido berço das aparências.
Compreendo mais intensamente, que Amô foi uma experiência decisiva em minha vida. E que os desenhos e pinturas dos "buttons", trabalhados por Márcia e Stela, têm muito dela. Eles serviram de ponte entre meu incipiente nível consciente, racional, e a parte decisiva da psique inconsciente incorporada por meu eu. Ele agora detém a chave da interação dos processos rituais de controle instintivo, secreto, invulgar, da realidade.
O entusiasmo delas pelos signos me contagiou. Tão forte sentimento de empatia não pode ser questionado. A visualização dos desenhos e pinturas motivou um fenômeno paranormal: a percepção de uma vitalidade simplória, trivial, cotidiana, pertencente a uma unidade indivisível. Pertinente aos aspectos qualitativo e quantitativo de todas as coisas observadas: tudo o que é pessoal é igualmente coletivo. E vice-versa.
Por que os "buttons" seduziram, dominaram por encantamento, "enfeitiçaram" Stela e Márcia com tanta intensidade? Afirma a noção de complementaridade do físico Niels Böhr, sobre a intensidade desse modelo singular de estímulo, que, no estudo da microfísica, o observador participa da experiência básica das situações, sem que seja possível determinar com exatidão, o quanto suas idéias "conscientes" interferem nos resultados. Analisemos dois contextos experimentais:
Na microfísica se investigam sistemas atômicos e subatômicos, nos quais se utilizam procedimentos quânticos. Existem semelhanças entre as várias noções de complementaridade, onde um mesmo fenômeno, na observação de cada uma delas, pode ser medido e investigado separado, mas não simultaneamente. Nem pensar criar abstrações visando identificar ao mesmo tempo, diferentes categorias de experiências específicas, separadamente uma das outras.
Como ignorar a intensidade do estímulo que produziu uma dinâmica interiorização da atividade psíquica de Márcia e Stela, como se ambas estivessem mesmerizadas? A manifestação do fenômeno físico identificado por Niels Bohr, inclui a participação psicológica do observador consciente. Os físicos atuais aceitam apenas a idéia do observador consciente.
Wolfgang Pauli, denomina de "probabilidades dominantes" as leis que permitem um arquétipo emergir do inconsciente. A ciência atual considera impossível descrever o inconsciente, assim como as partículas da microfísica. Conhecê-lo, seria como conhecer a matéria em si. Ele é um universo em expansão: influencia todas as descobertas científicas, e todos os fenômenos de todas as vidas, todo tempo, em qualquer lugar: é universal. Cósmico.
Por que o inconsciente pessoal de Stela e Márcia possibilitou o inesperado desenvolvimento de qualidades plásticas de raro e excepcional engenho? A noção de complementaridade se encaixa com perfeição nos motivos psicológicos "totais" (conscientes e inconscientes), que despertaram nelas uma sintonia com alguma força (interior e exterior) muito intensa.
Posso contrargumentar que estão apenas querendo se distanciar de uma situação de tédio cotidiano. Buscar um isolamento necessário para que possam melhor avaliar os conflitos internos, seqüelas de suas experiências alternativas. Fora dos padrões da cultura papai-mamãe.
Transformaram um galpão no sítio da família de Stela, que servia de depósito de peças sobressalentes de equipamentos agrícolas, em oficina de pintura. Trabalham também gravações em madeira. Estão grávidas, fertilizadas pela crença de que, ao produzir com prolixidade e talento variadas configurações dos signos dos "buttons", poderão, talvez, restabelecer uma sintonia essencial, mágica, com o mundo. Ou vir a poder resgatar para si mesmas, um conhecimento vital, original, que talvez houvessem perdido.
Vital, mas bloqueado pela sutil sedimentação da poeira das eras, das gerações, que atualmente impedem a conexão essencial entre os elementos espontâneos que estimulam no psiquismo, a compreensão dos fenômenos supostamente complexos, mas realmente simples, que harmonizam o observador com as influências contrárias, paradoxais, das manifestações da psique consciente e inconsciente.
Agiam, Márcia e Stela, como seus ancestrais que pintavam as figuras dos animais que pretendiam capturar ou abater na próxima caçada, e que serviriam de alimento para a tribo. Desenhavam as figuras dos "buttons" como se pretendessem captar os conteúdos subliminares por eles emitidos.
Mirassol possui um Museu Histórico e Científico, e uma gruta com mais de setenta metros abaixo do nível do solo. Existem, nessa cidade, fósseis, vestígios petrificados de seres vivos que habitaram a Terra na "era mesozóica", quando surgiram mamíferos, aves e répteis gigantescos (dinossauros), grandes florestas e as rochas sedimentares e vulcânicas.
Grandes anfíbios e pássaros povoavam a fauna. No final desse período surgem os primeiros mamíferos, os "marsupiais", com órgão em forma de bolsa (antepassados remotos do Canguru). Estudiosos de paleontologia freqüentam, a título de estudos científicos e pesquisas, os fósseis de Mirassol.
Todos participamos dos mesmos acontecimentos no pasto de Nova Aliança. Porém, a tendência para desenvolver um diálogo ativo, avaliar significados e propósitos, promover atividades de reprodução pictórica dos símbolos, são méritos a creditar às primeiras pesquisas de Márcia e Stela. Com que finalidade? A rápido, curto e médio prazos, nenhuma.
O interesse delas concentrou-se no estudo de uma "arqueologia anímica". Os "buttons" são meus. Por que não despertaram tantos interesses em mim? Chegaram a minhas mãos através de meu convívio com a Mochileira. Xico Gorgulho não se mostrou também tão fixado neles.
A necessidade de uma compreensão lógica dos fatos se impõe. O rei dos animais é racional, presume-se. Acontecimentos significativos e probabilidades dominantes são produzidos de maneira acidental, devido à ativação de um arquétipo. Adaptações e mutações dirigidas podem ocorrer em "diminutos" espaços de tempo, relativamente às mutações devidas ao acaso.
O darwinismo, segundo opinião de expoentes da ciência moderna, p. ex., Wolfgang Pauli, tende a uma fraude. Levando-se em conta a inter-relação entre a psique inconsciente e os processos biológicos, a seleção de mutações devidas ao acaso, segundo afirmam evolucionistas atuais, teria exigido muito mais tempo do que a idade conhecida do planeta Terra.
Significa, do ponto de vista científico vigente, que a mutação dirigida implantada no espécime troglodita da aldeia do "povo do outro lado do rio", agenciada por Thundra, é um acontecimento significativo acidental: produziu a ativação de um arquétipo. A história narrada pela Mochileira, a parábola do "povo do outro lado do rio", identifica-se com as concepções científicas da atualidade.
Os símbolos dos "buttons", a estranha experiência no pasto de Nova Aliança, minha convivência com Amô, fazem parte de uma conjuntura de fenômenos interativos. Do mesmo modo que as raríssimas coincidências ("sincronicidades"), posteriores a todos esses eventos até aqui narrados.
Tais "sincronicidades" e coincidências aconteceram, quando um grupo de cientistas desafiou os procedimentos oficiais da hierarquia de uma instituição científica dos Estados Unidos prestigiada em todo o mundo: o "Scripps Institute of Oceanograpy".
Minha limitada racionalidade não exclui a possibilidade de que o estudo do encontro de todas essas circunstâncias, esteja subordinado a uma ideoplasma original de mutação genética da espécie sapiens, agenciada por Thundra (Mochileira) há trinta e cinco mil anos, aproximadamente.
Tal mutação caracterizou-se a partir da reestruturação das células cerebrais (neurônios e sinapses) inseridas através de chips neurais implantados no cérebro do exemplar cromagnon capturado por Thundra há trinta e cinco milênios.
A incrível dedicação de Stela e Márcia na reprodução das imagens dos "buttons", se deve ao fato de elas representarem arquétipos identificados com a origem e os desdobramentos da vida racional mais primitiva: o conhecimento mais antigo e mais original da raça humana: o chip implantado há milênios na mente inconsciente (pessoal e coletiva), do exemplar feminino capturado pela starnauta Thundra.
Elas reproduziam símbolos de uma afirmação anímica de plenitude e lealdade aos "inimigos naturais da espécie": animus versus anima. A animosidade natural que libera a raça humana da velhice, da doença e da morte: cada criança nasce do útero da mulher para garantir essa perenidade, essa mutação genética.
Passaram-se duas décadas, vinte anos, uma vida: março de 1992. Márcia, hoje, mãe de um casal de gêmeos, formada em enfermagem, mora numa pequena cidade litorânea no interior de Sampa. Reside próxima à praia. Stela, PhD em Oceanografia Biológica, com mestrado em Biologia Marinha. Trabalha atualmente em pesquisas oceanográficas para o "Scripps Institute of Oceanography", sediado em La Jolla, Califórnia.
Eu, docente de História. Xico, professor no curso de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Domingo, dia 8, encontro-me na casa de Márcia. Tudo que ela precisa é manter seu emprego e sua residência singela, ver crescer os filhos Marcela e Mário. As ondas do mar são um imenso relógio natural marcando a presença do tempo quando quebram na praia. Nas paredes de sua casa, a presença dos desenhos mais recentes do casal de filhos com catorze anos, começo da puberdade.
Na cabeceira da cama, um espelho grande. Ela gosta de se ver fazendo sexo. Numa das paredes da cozinha, um pequeno écran de couro gravado: O Mar Está Para A Esperança Dos Homens Como O Sono Faz Sonhar. A frase de Cristóvão Colombo. Causou efeito.
No "hall " a presença de duas xilogravuras de 70 X 47 cm. Na parede da esquerda, a reprodução xilogravada do símbolo Desconhecido. Do outro, um quadro em madeira representando a deusa Ísis amamentando o filho Horus. Ísis, a deusa Vênus e o planeta Vênus eram uma só coisa. Um lugar no céu noturno e muitos nomes: Estrela Oriental, Ishtar, Astarte, conceitos femininos incorporados à Natureza e à Mãe Terra.
— Notícias de Stela?
— Ela pede que lhe mande os "buttons" para fazer uma análise em espectrometria "Mössbauer".
— Traduz.
— A espectrometria mede os comprimentos de onda da liga do metal de que, presume-se, foram produzidos os "buttons".
— E "Mössbauer", insiste Márcia.
— Esse tipo de espectrometria indica o estado de oxidação dos elementos químicos que possuem mais de um estado ferruginoso simultâneo. O Ferro (Fe) e o Titânio (Ti), p. ex.
— Os dois "buttons" ou só um?
— Basta um, o do símbolo Desconhecido fica contigo, não é?
Sempre vou achar mui estranha, se não exagero, a paixão delas por estas representações simbólicas. Uma das quais, nem sabemos o que significa. Por que apenas agora, duas décadas depois das ocorrências no pasto em Nova Aliança, Stela pede o símbolo metálico para análise?
Ela justifica-se mencionando certas "ocorrências pertinentes", coincidências ou sincronicidades. E o fato, nada desprezível, de só agora estar em condições profissionais, técnicas, de agenciar algumas pesquisas.
Márcia pergunta se os "buttons" estão comigo. Respondo que sim, mostrando-os.
— A mesma aparência luzidia, admira-se, não depreciou nem um pouco. Lindos, incrível.
— Um joalheiro analisou. Disse ser material sintético envernizado, sem valor de compra no mercado.
— Você quer vendê-los ?
— Só avaliar um possível valor de câmbio.
— O que pensei, mentalizei, consegui. Talvez tenha desejado pouco. Talvez subestimado minhas reais possibilidades.
— Talvez não, você está ótima deste jeito.
— Aceitar limites é uma forma de ser coerente. Se minhas metas estivessem muito distantes das condições reais de alcançá-las, talvez tivesse me desgastado mais e conseguido menos do que tenho agora.
— Você tem tudo, querida: beleza física e espiritual. Filhos, essa praia, um emprego, segurança financeira, um ex-marido e um amante que supre suas necessidades emocionais básicas. Você é minoria privilegiada, amor.
— Stela foi bem mais longe, não é mesmo?
Proporcionalmente. Mirassol produz, em média, um milhão de caixas de laranjas. Uma das maiores arrecadações de ICM da Oitava Região Administrativa do Estado. Maior parte dessa grana vai para as contas bancárias da família dela. Você acha que isso influiu alguma coisa?
— Sem comentários.
Caminhamos até a varanda. As ondas quebrando na areia da praia. A qualquer momento os filhos estarão de volta. Foram passar o "week-end" com o ex-marido, um economista que trabalha e reside em Sampa. Pediu para mantê-la informada sobre os resultados da espectrometria "Mössabauer" dos "buttons".