A MOCHILEIRA (Thundra) IV
L I V R O S E G U N D O
"Quando a Terra é avistada da Lua não
são visíveis as divisões em nações ou estados.
Isso pode ser o símbolo da mitologia futura.
A nação a celebrar."
Joseph Campbell
(“O Poder do Mito”)
A
METRÓPOLE
VISTA
DO
HORIZONTE
DO
PÁSSARO
Dirijo-me à barraca pensando na incrível capacidade de adaptação das pessoas. Desperto de madrugada, olhos em Amô. Fixo os seios nacarados, ímãs. A separá-los de minha língua a suave transparência do vestido. Farto salivar lupino sobre as glandulinhas mamárias.
Que seria do complexo de Édipo se as fêmeas do mundo fossem feitas desse barro. A tragédia de Sófocles não teria sido escrita. Sem problema, transar com uma mãe como Amô.
Uma voz desafinadamente melodiosa, segura pela musicalidade de um violão entoa: "Vou cantar este sambinha/feito de uma nota só/outras notas vão entrar/mas a base é uma só/esta outra é conseqüência/do que acabo de dizer/como eu sou a conseqüência/inevitável de você..."
Desço sua saia abaixo do umbigo. Na ponta da língua os bicos rosados dos mamilos. A música cada vez mais longe: ". . . e voltei pra minha nota/como volto pra você/vou dizer com minha nota/como gosto de você/e quem quer todas as notas/ré, mi, fá, sol, lá, si, dó/fica sempre sem nenhuma/fica numa nota só".
Ela, como se fora um módulo produzido pela suavidade libidinal, de um momento de rara doação e criatividade de Eros, pousa densa e leve sobre o epicentro pulsante de meu corpo nu. Um insight pulsa em minha mente: "Não ter rosto é a sua verdadeira face". A face do prazer. Amanheceu, entardeceu, anoiteceu e madrugou. Outro dia chega e agora também já passou.
Serena sensibilidade adormece-me. Desperto como que de um sonho no qual poderia ficar adormecido eternidades. Movo a cabeça para os lados, à moda dos cães molhados, buscando uma postura mental de vigília.
A meu lado, aberto, observo o zíper externo da mochila. Amô não está na tenda. Vontade de satisfazer meu obsceno desejo de bisbilhotar este nicho externo. Descobrirei nele algum mistério? Que segredo poderia guardar um nicho de mochila? Fosse saudável curiosidade apenas, por que esse complexo de culpa? Estarei traindo sua confiança?
Se Amô voltar de repente, eu estiver mexendo em sua mochila, digo não ter resistido ao impulso de olhar mais de perto esses retângulos. Parecem servir para dividir em zonas, uma representação gráfica de linhas brancas desenhadas em fundo verde. Pequenas teclas de cor amarela iridescente se acham posicionadas no ângulo direito inferior de cada um dos quarenta e cinco retângulos.
A parte superior do retângulo maior ocupa dois terços do total da imagem: a aparência de um minicomputador modelo palmtop , (18 X 12 cm), divide-se em duas: a intermediária (18 X 2,5 cm), e a que lhe serve de base (18 X 1,5 cm). As medidas são aproximadas. O visual mutante é uma espécie de puzzle móvel. A complexidade de seu funcionamento, inquestionável.
A influência das imagens em meu psiquismo é de intenso efeito magnético. A impressão de que posso permanecer dias, meses, anos, olhando para elas, até decifrar seus enigmas. Desejo absorver a complexidade de seus códigos. Decifrá-los. Apalpo a superfície da mochila em busca das baterias. Nada. Em seu interior, só livros.
No retângulo superior, piscam uma série de onze imagens de geometria proporcional. Por todo o contorno da figura, giram rápidas, linhas intercaladas. Fluem no rumo dos ponteiros de um relógio, dezenas de signos geométricos e de outros que, presumo, sejam números. Sucedem-se na direção em que segue o fluxo da seqüência de imagens que se iluminam simultaneamente à passagem das linhas de luz.
Na parte intermediária, um 12° retângulo de igual tamanho dos antecedentes, ilumina-se de forma intermitente, ficando o piscar-piscar por momentos, até ser substituído por outro. Quando isso acontece, esse décimo segundo retângulo muda toda a seqüência de representação dos signos geométricos em número de doze.
As seqüências se repetem por oito vezes seguidas, quando, só então, retornam ao segmento da série inicial. Seduzido pelo inusitado dinamismo da interação intercorrente desse evento visual, exclamo extasiado: "Incrível". Estou ou não participando de um evento visual interdito? Proibido. "Sagrado"? Meu estado mental é de perplexidade, dúvida.
A limitação racionalizante não quer aceitar nem reconhecer como sendo legítima, uma série de acontecimentos que simplesmente não poderiam estar acontecendo. E se todas essas estranhezas são produtos do efeito alucinógeno de um comprimido de LSD?
Deve ser isso. A Mochileira lambuzou os seios com LSD-6 ou um pingo branco (LSD-25). Com quantas microgramas a vadia havia me dopado? Que sacana. Ela sim traiu minha confiança. Olho para o estranho painel de sua mochila. Meus dedos, numa última e definitiva tentativa de descobrir a causa das imagens luminosas sucessivas, apalpam a textura do tecido da mochila. Minha racionalidade deseja fazer parar de fluir a realidade inverossímil das linhas que se movimentam dentro dos retângulos.
Símbolos dentro de símbolos. Códigos complexos que fluem de outros códigos. É fantástico. Mal posso crer em meus olhos. Deve ser alucinação. Realmente, não pode estar acontecendo. Estou, aposto que estou, "viajando".
Aonde está essa vadia? Desejo trocar algumas idéias com ela. Preciso vê-la urgente. Necessito de respostas. Busco sem sucesso identificar a etiqueta da "grife" do fabricante da mochila, da loja ou butique de revenda. Nada. Esforço em vão. O vento começa a soprar mais forte. Uma frase impertinente marca presença em minha mente: "Amor, Amar à Estrangeira".
Preciso estabelecer as associações lógicas. Avaliar com prudências os acontecimentos. Não ser passional. Difícil. Estarei realmente "viajando"? Esse visual da mochila dela é real? Só há um lugar onde ela pode estar agora: no alto do planalto da Gávea, sobre a caverna do Viking.
Desde que não estão na parte inferior da Pedra da Gávea, os "guias" também devem estar no planalto. Os estranhos e falsos "guias" do salto do Canguru. Caminho pela vereda que conduz ao planalto. Sou senhor de meus sentidos. A única perturbação na ordem lógica dos eventos racionais, está em que o painel da mochila dela não encaixa em nenhum nicho de minha racionalidade. Dos fenômemos da realidade do mundo, de meu mundo, ele não faz parte.
Ao chegar ao cimo da montanha, os questionamentos excitam com intensidade meu psiquismo. A mente ferve. A Mochileira é a única pessoa do mundo que pode fornecer respostas às minhas indagações. Uma grande nuvem cinzenta, apesar do vento forte, teima em permanecer imóvel nas vizinhanças da altitude da Pedra da Gávea.
Estranho a presença de uma densidade cor âmbar, porém iluminescente, que está se formando no espaço interno dos sete círculos concêntricos gravados há séculos, ou milênios, no solo do planalto. Deve ser algum fenômeno atmosférico de altitude. Em poucos segundos a névoa abarca por completo o espaço interior dos sete círculos, adensando-se ainda mais.
Quero retroceder, não consigo. Tento fugir da intenção de permanecer neste lugar. Em vão. Desejo gritar por socorro. Não posso. A névoa se expande. Encontro-me no interior de sua periferia. É como sonhar em câmara lenta. A intuição de que Amô está aqui, a poucos centímetros de mim. E ao mesmo tempo infinitamente distante. Inalcansável. Uma insuportável angústia ameaça se estabelecer, mas, felizmente, se desvanece.
Toda minha ambição está dirigida em poder caminhar até dentro dos círculos, onde, presumo, encontrarei Amô. Algo no interior da névoa movimenta-se. Não consigo progredir um passo sequer em direção ao epicentro. A princípio vejo sombras. Elas mutam em imagens indefinidas de inúmeras pessoas.
Refletem-se na superfície verticalizada dos retângulos, dos monolitos muito polidos, escuros, de uma dimensão de aspecto fria, marmórea, insensível, indevassável. Não consigo discernir com precisão as imagens espelhadas. Nem vencer a pouca distância que delas me separa. A flexibilidade de meus membros é nula. Como se me encontrasse na parte menos densificada, periférica, de um campo de força.
Meu tórax imita a pulsação do campo de força. Sou agora uma simples extensão das vibrações de sua ressonância magnética. Estou sendo "assimilado". A empatia é inexorável. O campo magnético está se apropriando dos átomos de meu corpo físico. Incômoda impressão de oscilar em sentidos opostos. Estarei me desintegrando? Meu estado psicológico está além do medo.
Acredito que Amô encontra-se a meu alcance, à curta distância, dentro do nicho pulsante. Tão perto e ao mesmo tempo inatingível. Não consigo conter-me em mim mesmo. Sou um universo em expansão. Minha pupilas não cabem nos meus olhos. Minha visão se expande.
Alguma coisa está querendo sair fora de dentro do casulo do campo de força. Deseja nascer. Vencer os empecilhos do útero. Romper a casca do ovo. Ganhar força. Crescer. Libertar-se. Voar.
Não sei quem ou o quê. Sei que sou parte deste esforço desesperado para sair do interior do casulo de forças que me aprisiona. Desejo projetar-me para fora do útero magnético do campo de força. Sim, sou eu, a sair fora da prisão insuportável para a liberdade. Estou nascendo agora, aqui. Sou eu e ao mesmo tempo um ser singular, alado.
Do nada de minhas cinzas gero-me. Estou extinguindo-me e nascendo. Fênix, pássaro mitológico, na posse do dom de voar sobre as luzes da cidade de cimento. Edifícios de apartamentos. Vejo suas luzes. Reflexos do sol poente projetando-se dos vidros das janelas dos prédios. Nas rodovias, a dinâmica do formigueiro humano anoitece.
A cidade vista do ponto de vista do pássaro. Algo mágico acontece. Os seres humanos são assim na realidade. As casas e os apartamentos são seus ninhos. Milhões e milhões de seres vivendo tão próximos uns dos outros. Ao mesmo tempo tão distantes e sozinhos. Como são insignificantes suas crenças, filosofias, religiões e objetivos. De que lhes servem?
Ignoram para onde caminham. A azáfama sapiens reflete-se num grande espelho global inconsciente: ansiedade e pânico. Medo, ira piedosa, lascívia do desespero. Uma vida, milhões, bilhões de vidas desperdiçadas pela crença de que há virtude em serem adversários de si mesmos.
O grande pássaro sobrevoa o mar. Navios singram a água em direção a outros continentes. Barcos pesqueiros estendem armadilhas para peixes. Agrada-me ouvir este ruflar de asas. A força de atrito do vento em meu corpo flutuando nesta altitude. Asas imóveis planam. Observação privilegiada, pertenço a duas espécies universais: sou bípede e alado. Conheço os segredos de ambas. Os véus que separam esses dois mundos para mim inexistem. Sou habitante de um, (como dizer?) transespaço.
Por sobre os miríades de reflexos marinhos, descrevo uma manobra de 180 graus. Mergulho veloz rumo à superfície iridescente do grande oceano. Vôo em arco. Em sessenta segundos, outra vez estou planando de volta à paisagem marítima da Baía de Sepetiba. Sou eu, e ao mesmo tempo pássaro. A sensação vitalizante de estar a sentir os raios solares nessa altitude.
Em poucos segundos estão à vista várias ilhas, entre as quais a Grande, a dos Macacos, a do Grego, das Palmas e de Marambaia. Encontro-me agora, outra vez, nas proximidades do alto da montanha. Estranho enigma: vejo meu corpo alojado no interior dos círculos concêntricos. No alto do planalto da Pedra da Gávea.
Algo de mim no pássaro se observa. Sou eu a me espreitar. Uns três metros, de ponta a ponta das asas. A aparência de um Albatroz gigante. Inacreditável. Contemplo a engenharia do homem e ao mesmo tempo metonímias: infinitos espelhos que se interdependem, sem que seus personagens se conheçam. Uma humanidade que vive apenas de reflexos.
A
AGONIA
DE
TÂNIA
VIA
SATÉLITE
"Nossa Constituição é enxovalhada no
dia-a-dia. Até pelos que devem zelar
pelo respeito à lei."
José Carlos Dias
Meu corpo físico desperta sobre os círculos desenhados no planalto, às 22 horas. Que está acontecendo realmente comigo? Sou ateu, graças a Deus. Sem disponibilidade para visões místicas. Não ingeri nenhum alucinógeno. A certeza de que Amô é uma criatura muito mais complexa e Estrangeira do que pode presumir minha vã imaginação.
Em companhia destas intuições, desço do planalto em direção à barraca na caverna do Viking. A sensação de intransponível distância entre mim e ela permanece. A certeza de que não mais voltarei a vê-la. No espaço anteriormente ocupado por seus pertences, nada há.
O coração começa a pulsar rápido. Inclino para trás o tronco. As cardoveias em franca taquicardia. Estou dentro da tenda, com a mesma sensação de perda que aconteceu comigo em março desse ano. Nessa data, estou a adquirir alguns livros numa liquidação da livraria Siciliano, no centro da cidade de São Paulo.
Ao voltar à praça da República onde estacionei o fusca. Paro na rua em frente a uma vitrine com muitos monitores de vídeo de tvvisão simultaneamente sintonizados no "Jornal Nacional". Cid Moreira divulga a notícia de que agentes da repressão atingiram mortalmente uma guerrilheira urbana codinome Tânia.
Tânias não faltavam na guerrilha. Mas aquela, segundo informam as pulsações das cardoveias, é a "minha". A câmera reportagem mantinha-se à distância do cordão de isolamento policial. Focalizava-se seu corpo exangue no chão da calçada. Os agentes da violência paramilitar desvairada, a serviço dos governos autoritários, proibiam qualquer aproximação em seu socorro.
Tânia estava morrendo "ao vivo", via satélite. Nossos sistemas nervosos mantêm comunicação nesse momento de dor. Por telepatia, seu coração e sua mente compartilham comigo emoções e complexos sentimentos. De um a outro psiquismo. Sem interferência dos cinco sentidos.
A Câmera focaliza dois enfermeiros ao lado da ambulância. Entrevistado pelo repórter, um deles afirma que policiais não permitem que prestem ajuda à vítima. Ela permanece perdendo sangue. Distanciando-me da vitrine chego ao fusca com os olhos marejados. Sintonizo uma emissora de rádio num programa noticioso, na intenção de ouvir mais detalhes sobre a emboscada que vitimou Tânia.
Há uma persistente interferência de outra emissora na faixa de onda do noticiário. A sintonia se fixa no som dos versos. Estranha e pertinente sincronicidade emocional com o sinistro evento.
Vai minha tristeza/e diz a ela/que sem ela/não pode ser. . . As cardoveias ameaçam com nova taquicardia que felizmente não acontece.
A música prossegue fazendo sangrar: . . .E diz a ela/que sem ela/não há paz/não há beleza/é só tristeza/melancolia/e esta saudade/que não sai/de mim/não sai/Mas, se ela voltar/se ela voltar/que coisa linda/que coisa louca/há menos peixinhos/a nadar no mar/do que os beijinhos/que darei/na sua boca.
No outro dia um jornal publica, apesar da proibição da censura, uma foto de Tânia. "Minha" Tânia. Confirmou-se a premonição de sua identidade, através da sintonia da taquicardia. Agora, vinte anos depois, numa situação de perda semelhante, uma voz próxima à tenda repete, ao som de um violão, os mesmos ritmos da canção, no alto da Pedra da Gávea: Vai minha tristeza. . . Estranha sincronicidade. Muita mais estranha na sequência posterior dos acontecimentos.
"SENTIU
FALTA
DE
MIM,
GAROTO?"
Tânia gostava de fazer sexo menstruada. Vivia perigosamente. Passava a sensação de estar sempre a quilômetros de velocidade mental por hora à frente do resto dos mortais de sua geração. Talvez tivesse medo de parar para pensar em outra alternativa de vida. Ou tivesse pensado e chegado à conclusão de que inexistia.
Não gostava de seu papel social, de sua representação normal de pequena burguesa feita para os compromissos cosméticos: o cabeleireiro, a depilagem das pernas, os filhos, o lar, o chá das cinco, o clube, a cera negra, o tratamento de celulite, a tvvisão.
Gostava da frase de Lennon que afirmava ser a mulher o negro do mundo. Sentia-se o negro do mundo. Colonizada pelo emocional chauvinista do machismo desvairado. Toda vez que via Tânia, uma intensa satisfação emocional iluminava meu coração solitário.
Quando dela me aproximei neste último encontro que passo a narrar, este poema brotou de minha mente. Fruto amadurecido da sensação que tenho de sua presença: Rosa azul/Rara flor de carne e futuro/Por que crês o tempo presente tão insuportável/Milagre, estás aqui/Visível, viva/Tua luta contra a escravidão e a morte/Amor, espaço vital e vida/Pareces saída da saga de Cervantes.
Encontrei-a num shopping. Atendi a solicitação de estar com ela, através de telefonema. Chope, cinema, bar Riviera e motel, nesta seqüência. Cem horas apenas, de sexo, carinho, paixão. Virei mundo por ela. Ela, como sempre, às pressas. Presente, mas tinha de se ausentar. Fugindo de uma situação perigosa para outra. Ocupada em estar nesse estado emocional, vivia como que da esperança de transcender, superar o cotidiano de uma existência cheia de perigos. A adrenalina dela à mil.
Seu compromisso político com a guerrilha, uma espécie de ideal sem idealismo. Uma opção a mais, dentro das opções a considerar. Talvez imaginasse lutar a favor de uma Câmara e de um Senado que não fossem constituídos, em sua maioria, por Inocêncios simplesmente inúteis à causa social. Lutasse talvez, para que o Congresso não tivesse tomado por assaltantes bem remunerados do erário. Muito bem pagos para permanecerem calados e coniventes, enquanto a política econômica se sucede na entrega do país aos especuladores financeiros do FMI. E a tragédia social se alastra como uma peste à Camus.
O grupo dela militava por capital de giro. Os bancos são os únicos lugares com concentração de capital social, onde poderia obter acesso ao dinheiro para garantir, por mais algum tempo, a precária sobrevivência e militância da sigla política marginal pela qual combatia...
— Vocês vão assaltar outro banco, insinuo, enquanto ela se arruma frente ao espelho do banheiro. Sua beleza presta pouco culto à vã vaidade.
— E daí, indaga com provocativa displicência.
— Você não se contenta com emoções tatibitates. Que dona de casa você daria, mulher. Essa energia toda domesticada para criar os filhos.
— Sem essa, carinha. De dona de casa pequeno-burguesa esse país está saindo pelo ladrão.
— Não há nada demais em gostar de comerciais de margarina, bom-bril e sabão em pó, eles são símbolos do modelo padrão.
— A repressão está vindo com tudo pra cima da gente. Persegue, tortura e mata. Precisamos de grana urgente, tem muita gente que necessita sair logo desse horror.
Presumi que esta pode ser a última vez que a vejo. A previsão se confirmaria. Ao empatizar esses meus sentimentos, ela diz:
— Pode ser a última vez que a gente se ver. É bom estar contigo amor.
Pronunciou as palavras com contida angústia, como se tivesse certeza da afirmação. Falou das embaixadas e dos consulados, mais vigiados do que prisões de segurança máxima. Nem instigo a polêmica. Não gosto de vê-la lutando contra moinhos de vento.
O pertinente pressentimento de suas palavras se confirmou. Parodiando o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898/1956), ela desafia:
— "O que é assaltar um banco, comparado à fundação de um banco?". Em seguida pergunta se estou precisando de "algum" para o "tx".
— Divide a conta do motel e tudo bem.
— Normal, gato, se possível entro em contato, mas está difícil.
Atrasada para um compromisso, sai batendo a porta. A noite. Lá fora está soprando um vento selvagem e frio. Fiquei a sentir-me desprezado pelo mundo, incapaz de me harmonizar. Ela não mais me guiaria até outra cama de motel. Prefiro não pensar mais nela, a estar sempre à sua espera.
Segundos depois de sair, Tânia volta a abrir a porta, apesar da tensão desses dias de cão, seu humor marca presença. Botou a cabeça para dentro do quarto e indagou, pronunciando uma simples frase que, realmente, significa mais coisas do que possa imaginar a vã filosofia:
— Sentiu falta de mim, garoto? E foi embora. Para sempre.
Sorrio. Olhando para o lugar onde ela esteve presente, ouço seus passos do outro lado da porta, afastando-se. Tânia está aqui e ao mesmo tempo se distanciando para sempre. Exclamei então do fundo do coração:
— Sempre, querida.
"ECCE
HOMO"
SAPIENS/DEMENS
CIBERNÉDIPO
"Os extraterrenos estão
preparando o homem para
um contato maior."
Leo Sprinkle
O epicentro simbólico da sobrevivência da psique é a memória. Agora que a Mochileira não está mais comigo, resta-me a lembrança. Ficávamos longos períodos sem falar. Palavras pareciam fora de propósito. A mais limpa comunicação, a melhor, é a comunicação sem ruídos. A telepatia, mais completa e objetiva do que todas as outras formas de comunicação. Impossível mentir ou tergiversar por telepatia.
Memória não é saudosismo. Lembrar para organizar as idéias, aqui, no alto do planalto da Gávea, dentro do espaço capsular da tenda, busco as referências de nosso convívio, os significados dos períodos de telepático silêncio, quando se quebrava o jejum verbal:
Certo dia morno, acampados entre Rio das Ostras e Macaé... A memória intencional sugere sua presença na barraca, Amô lia.
— As pessoas mal saem da fralda da família, são dirigidas ao berçário da escola, algumas conseguem entrar na creche da faculdade, estimulei sua resposta. É isso a base da vida de uma geração?
— Sem uma história de liberdade para contar a seus descendentes, as pessoas nascem, crescem e fenecem no mundo infantilizado. Muda a idade, apenas, e o tamanho dos brinquedos.
— Vida mesmice, sem questionamentos, linear...
— Civilização e cultura dos cibernÉdipos, a serviço inconsciente do arquétipo da Mãe Máquina. A Mochileira fechando o livro contempla o nada. Em seguida murmura, como que de si para consigo:
— Filhinhos da mamãe. Mamãezinha dos cibernÉdipos.
— Que determinismo, sem liberdade de aprendizado, qualquer teoria é mero academismo.
— As seis paredes da faculdade são extensões das seis paredes da escola secundária, por sua vez, é a extensão das seis paredes do lar. Os filhinhos cibernÉdipos. Vivem e morrem dentro de "imobilizadores" que conduzem, vida afora, às seis paredes da cova.
— A mente existe para mantê-los presos, ironizo.
— A mente é um universo em expansão. Quem ignora ser prisioneiro, não se move para sair detrás das grades. Afeiçoa-se ao carceireiro.
— Que mistério bufo, essa vida.
— O que chamam de educação é a transferência de condicionamentos tipo "imobilizadores mentais", serena, impassível, Amô sugere meu raciocínio como continuidade do seu.
— Tudo que ensinam é conhecimento acadêmico: teoria da compulsão.
— A compulsão da teoria. Não desejam abandonar as seis paredes do útero fechado. O mito do "paraíso original" é parte do larbirinto original. Vivem seu pão de cada dia: a carência de liberdade.
— A carência de tudo que a carência de liberdade representa. A lei do eterno retorno ao horário nobre das novelas. Aos programas de domingo.
A Mochileira parou um momento, como quem mede o alcance das palavras, prossegue:
— Inconscientes de que passam a vida congelando suas possibilidades. A realidade para eles é a indigência virtual.
Eu não compreendia bem o significado de suas palavras, mas sabia intuitivamente o que elas queriam dizer:
— As cabeças servem quase que tão somente para separar as orelhas, confirmo. Como diria o poeta: "Que vida mais besta".
DORMINDO
NA
CRUZ
COMO
SE
NO
TRAVESSEIRO
Quando se vive no passado morre-se mais a cada dia. Fazer o quê neste momento, sozinho nesta tenda, no alto da Pedra da Gávea? Reforço os estranhamentos, para melhor compreendê-los. Talvez este seja o trabalho real de toda uma vida sapiens.
A tarefa de achar as palavras para escrever este livro, de acordo com as motivações dos mais recentes e intrigantes fatos e revelações sobre Amô, durou nada menos que duas décadas. Uma experiência cada vez mais singular no que diz respeito aos estranhamentos. O tempo passa, eles aumentam.
Naquela época, gostaria de acreditar que foram produtos do excesso de sol. Do inconsciente excitado. Há vinte anos passei por uma metamorfose kafkiana às avessas: de cibernÉdipo barata sapiens, para a difícil condição de ser humano.
Quando meu racionalismo embrionário não conseguiu compreender as imagens e os ritmos do pequeno painel exterior da mochila de Amô, a atitude certa seria admitir com humildade minha ignorância. Ser prudente e razoável é um objetivo difícil de alcançar.
Ao contrário de reconhecer minha perplexidade, estando diante de um evento além dos limites de meu alcance racional, comecei a agredí-la mentalmente. Esquecido de suas lições práticas de telepatia.
Acusei-a de trair minha confiança. De ter-me feito ingerir comprimido de ácido lisérgico, provavelmente diluído em seus seios, contra minha vontade. Pensei realmente estar "viajando" ao tatear o tecido maleável do palmtop incrustado e funcionando, ignoro a partir de que fonte de energia, no nicho de sua mochila.
Agora, sofrendo a dor da ausência, uma dor quase insuportável, sei que a disponibilidade do nicho semi-aberto de sua mochila, não passou de um teste de confiança. Não passei nele.
Eu traí sua confiança. Não gosto de ser meu próprio advogado de acusação. Mas a verdade é esta. Não consegui dominar os subprodutos de minha agressiva subjetividade sapiens. Eu, produto hereditário da compulsão cromagnon, agi de forma tão previsível. Amô estava captando todas as nuanças de minha atividade PSI, subjetiva, quando me deparei com as inacreditáveis evoluções das imagens do palmtop.
Não mantenho um complexo de culpa por minha resposta condicionada, por meu comportamento subjetivo confuso. Não estava preparado para passar, através de um salto mental qualitativo, a um nível PSI imediatamente superior.
Quem, em minha geração, vivendo tantos conflitos, faria melhor do que eu no teste do palmtop? Para mim, a pergunta vital surgiu como um insight: por que a Mochileira estava promovendo um trabalho de campo, experimental, comigo? Por que eu?
Que critérios de seleção motivaram minha escolha? Ignoro.
MAMÃE
MÁQUINA
DÁ A
LUZ
A PAPAI
CIBERNÉDIPO
"Comece pelo começo, disse o Rei
com ar muito grave, e vá até o fim.
Então pare."
Lewis Carrol
(Alice no País das Maravilhas)
Necessito encontrar meu centro de gravidade. Memorizar Amô com prudência e nitidez. Chove. Dentro da tenda armada na caverna do Viking, vou buscar Amô aonde sei que posso encontrá-la: na nitidez das lembranças recentes. Tento vencer o vazio de sua ausência objetivamente. Aprender com as reminiscências. Meditar. Memorizar.
Quando na região de Rio das Ostras, estamos a contemplar a escureza das águas da lagoa da Coca-Cola, na praia da Costa Azul. No "mar do Norte" ficam os surfistas, as ondas mais fortes. A Ponta Azul é excelente lugar para banho e mergulho nas piscinas naturais entre pedras e rochedos. Para elas nos dirigimos. São quinze horas.
Ao anoitecer, após caminharmos os quatrocentos metros em forma de ferradura da praia do Cemitério, a mais freqüentada, com bares e ofertas de pescados, fomos jantar à luz do luar Crescente. A mente aberta respirando um prana de vitalizante liberdade. Não cedemos às solicitações do cansaço físico ou mental.
Pedimos ao garçom do bar a especialidade da casa: moqueca de peixe com azeite de dendê. Estamos em território fluminense, mas os donos do pedaço são baianos. Conhecem as manhas de condimentar os frutos do mar com temperos de origem vegetal. A fragrância insubstituível.
Duas caipirinhas de vodka, enquanto não chega para nosso consumo, os sabores de duas, das mais de vinte mil espécies de peixes sobreviventes das águas.
Voltamos à tenda às vinte e duas horas. Caminhar após um rango queima mais rápido as calorias. Relax. Corpos na horizontal sobre as esteiras. Sob as estrelas a selene hipnose. Momento propício para uma sessão Coruja. Ela faz fluir um fluxo de consciência mais profundo. Amô puxa um lero.
A Mãe Máquina chegou lá, antes que pergunte aonde, responde: No satélite, na lua. Coloniza a mentalidade dos cibernÉdipos desde tempo imemorial. Anterior ao surgimento do paleantropídeo neandertal. Mutações dirigidas.
Minha mente sempre embarca nos desdobramentos desses leros.
— Desde os primeiros períodos da Glaciação Wurm, no paleolítico médio, meu comentário parece bem vindo.
— A capacidade cerebral dos neandertalenses ultrapassava a dos homens modernos: 1625 cm3, prossegue ela. A Mãe Máquina reforçou o potencial de adestramento instintivo: paranóia de sobrevivência e neurose. A mesma psicopatologia do atual Homo sapiens. Demens.
Este lero me fascina. Faz fluir um pertinente fluxo de consciência. Nem preciso da pequena quantidade de cannabis para iniciar a motivação mental.
Ao ouvir Amô dissertar sobre a matéria, meu psiquismo age como sendo uma extensão de certo nível PSI de sua mente. Ela sabe e incentiva isso. Sirvo a seus propósitos.
Gosto de ordenar as idéias de evolução das várias identidades sapiens do tempo historiografado. Acredito que este conhecimento melhora minha compreensão do que está acontecendo no momento atual da história.
— Existe, ou é só folclore, um elo perdido entre os paleantropídeos e o homem moderno?
Por momentos ela permanece calada, como se imaginando uma parábola por resposta.
— Imagine um rio profundo, largo e muito longo.
Passo a cismar o Tigre e do Eufrates, em paleolítica antigüidade deslizando, caudalosos, as águas, talvez, sobre um só leito.
Ela pronuncia as palavras, enquanto imagens equivalentes povoam minha mente.
— Segue a correnteza sobre um imenso leito, ampliando-se suas águas até a linha de remotos horizontes.
Neste momento, rajadas fortes de vento jogam areia sobre nossos corpos. A musicalidade rítmica das ondas quebrando na praia a poucos metros, funde-se com o som das águas da margem do rio da narração.
A sonoridade de sua voz possui a estranha propriedade de me distanciar do presente. Como se meu psiquismo estivesse sob a influência provisória de um feedback control signal, proveniente de alguma vibração mais sutil de sua voz.
— Há trinta e cinco mil anos, numa de suas margens, habitavam ancestrais do homem moderno. Ao longo dos níveis e sub-níveis das cavernas incrustadas numa montanha rochosa.
— Hominídeos cromagnon. Ela ignora minha interferência.
"Quando nas nuvens os relâmpagos se cruzam, o medo da tribo transforma-se em pavor. As superstições afloram à flor da pele. A tempestade cai sobre a paisagem primitiva. Dentro das cavernas, alguns encolhem-se, fetalmente. Outros, mais agressivos, buscam uma atitude mental mais alerta.”
— Espreitam. Paranóia neolítica ambiental pertinente. Os perigos, as ameaças, realmente estavam presentes: inimigos bípedes, rastejantes, quadrúpedes, alados.
"Um deles mantém entre as manoplas o fêmur destro arrancado do esqueleto de outro caçador que havia caído de uma grande altitude, ao tentar capturar um bisonte seguindo uma difícil trilha numa região montanhosa.”
"Em outro sub-nível da caverna, um gravador primitivo batia com seu buril tipo bico de papagaio, numa saliência de pedra, na tentativa de reproduzir, o mais adequadamente possível, a figura de uma rena, animal objeto de uma expedição de caça, logo que melhorasse o tempo e fizesse sol."
— O propósito mágico-religioso de abater a presa da caça, após se apossar subjetivamente de seus atributos físicos desenhados. Minha intervenção mostra que estou na freqüência da narração. Vodu paleolítico, a arte figurativa e minimalista de Lascaux e Altamira.
A intervenção é como que uma extensão de seu discurso. Ela prossegue:
"Permanecem plantados por milhares de anos no sítio primitivo de seus ancestrais. Os recursos naturais da fauna e da flora vão escasseando. Até que, após longo inverno de geadas, só restam para consumo, insetos, lagartos e pequenos roedores.”
"A mudança de estação normaliza a rotina. O sol, outra vez, como uma bênção, provoca urros de alegria nos membros da tribo, ao raiar intenso e diário outra vez. Não era sem tempo, as provisões já haviam acabado, há meses alimentavam-se de migalhas.”
(A lua Crescente brilha no alto, suspensa pelo invisível fio da gravidade...)
"Exceto pela presença do rio, encontram-se cercados por vasta área deserta. Os mais fortes e ousados buscam ultrapassar os limites do ermo e árido descampado, sem êxito. Os mais arrojados aventuram-se rumo ao desconhecido. Muitos morrem de fome, outros conseguem voltar. Debilitados, prostram-se por dias, vítimas da insolação e da estafa.”
"Quando não resistem, são inumados com oferendas de gravuras e esculturas em osso e pedra, dentes perfurados e pingentes do culto aos mortos. Tentar atravessar a difícil área deserta fica sendo considerado Tabu: a tribo não mais rumina a possibilidade. Passam a viver da esperança de que, um dia, venham a chegar na outra margem do rio.”
"Nas primeiras tentativas não poucos morrem afogados, traídos pelo leito desigual, pelos redemoinhos gorgolejantes, pela correnteza traiçoeira das águas. Os mais insistentes aprendem a andar, sem ousar ir muito longe da margem, mesmo nos períodos de maior seca."
— Quem sabe o gênio das cavernas descobre, talvez, o caminho das pedras, ironizo.
— Juram, numa pantomima de gestos, ruídos vocais, sussurros, grunhidos e murmúrios de sons desarticulados, apontando o dedo, olhando para o alto, que Wotorangotango, seu Deus, está punindo a todos pelas muitas iniquidades.
— A culpa, raciocino, a mais primitiva semente, a que mais frutificou.
— Prosseguem "imobilizados" por gerações e gerações.
— A herança da cultura convencional, confirmo, puxa mais do que cem bois.
Amô, após breve intervalo de contemplação lunar, prossegue:
"Desafiar a tradição é Tabu. Está criada a religião, Wotorangotango seu Deus. Porém, certo dia, passados milênios, um engenho alienígena necessita do precioso mineral, água. Venturoso acidente: a nave estelar, após adejar na atmosfera em direção ao lugar do pouso, firma-se num sítio próximo às cavernas subterrâneas embutidas na montanha de pedra.”
"Um detetor de vibrações com design e tamanho de uma moderna caneta aerográfica, traduz a variedade de ondas mentais emitidas pela comunidade dos trogloditas. A varredura magnética transforma-se num código alfanumérico de padrão restrito estímulo-resposta."
— Os deuses astronautas eram mesmo uns filhos da mãe, após breve intervalo complemento: Máquina.
"A caneta captava os padrões ambientais e um monitor estabelecia com precisão, os modelos de ação-reação comportamental, através da análise das susceptibilidades magnéticas na direção do campo externo ao posicionamento vetorial da nave. As informações de retorno de campo são analisadas."
Nesse momento Amô pergunta se não está sendo prolixa, chata. Respondo que não é todo dia que se ouve uma história desta. Parece mais uma explicação da falta do "elo antropológico perdido" (inexistente) entre os antropóides remanescentes da idade dos metais, e os técnicos em informática e astrofísica da NASA.
Ela prossegue:
"Thundra, uma starnauta membro da tripulação da nave, seqüestra provisoriamente um espécime da raça rudimentar que se distanciou de seu habitat numa incursão ocasional pelos arredores. Conduzido ao interior da nave, alguns testes isomórficos são realizados.”
"Introduz-se um microcampo de chips (eletrodos) da dimensão de um vírus (0,1 mícron), em certos nichos propícios da mente do hominídeo. Após algum tempo, amplia-se a extensão do microcampo em um milhão de vezes, através de células de metal líquido imersas numa solução de íons.”
"A troglodita, conduzida de volta às proximidades de seu espaço habitacional rudimentar, permanece aparentemente igual a seus conterrâneos. Porém, a habilidade associativa de sua mente, estabelece correspondências entre os vários conjuntos da experiência instintiva, motivacional, emocional, pessoal e coletiva, de seus pares.”
"Forças de origem biológica que atuavam de forma inconsciente, independentes da finalidade do aprendizado, transformam emoções primárias em emotividade (formação do arquétipo). O transplante dos chips para o cérebro do exemplar cromagnon, é o embrião de uma condição subjetiva mais complexa.”
"A experiência de um comportamento mais consciente, sedimenta-se em poucas gerações. Seus descendentes são, agora, mais do que simples amontoados de ações e reações instintivas. Nasce a intencionalidade na mente do rei dos animais. A possibilidade do conhecimento individual específico. Um selvagem apto ao exercício da seletividade.”
“Em vinte milênios começam a capturar animais individuais, e em manadas, para abastecimento vivo de carne e lã. Simultaneamente ao desenvolvimento da criação animal, substituem a colheita e a caça predatórias, por uma produção alimentar sistemática. Os resultados positivos da inseminação artificial aparecem nos primeiros hominídeos descendentes dessa “mãe mitocondrial da humanidade."
— Mãe mitocondrial, que que é isso?
— O DNA não é encontrado somente no núcleo das células. As estruturas celulares denominadas mitocôndrias geram energia e têm também seu DNA mitocondrial (mtDNA). Este DNA agencia mutações mais elaboradas, muito mais depressa que o material genético normal contido no núcleo celular.
— Modelo padrão do atual Homo sapiens, afirmo, sem compreender muito bem a explicação sobre a mutação provocada pelo ácido desoxirribonucléico.
“Deste modo, apenas desta maneira, formar-se-iam estruturas sociais diferenciadas. Antes da mutação atuar, eram seres solitários, nômades e caçadores. Independentes, viviam para se protegerem, em grupos, tinham igualmente as mesmas capacidades. Começaram a produzir cunhas de pedras, machados, aproveitavam ossos e demais subprodutos animais. Surgiram os especialistas. Estes, favoreciam a comunidade apenas quando eram favorecidos por ela: se o camponês nutria o artesão, o artesão facilitava o trabalho do camponês com novos instrumentos.”
“Nasceram os impulsos à agricultura: o cultivo de tubérculos, a cerealicultura, que pressupõe uma economia de acumulação e conservação, exigia uma capacidade intelectual maior, um certo nível de desenvolvimento técnico, ferramentas tipo pilões. Tudo isto significou o que estudiosos da pré-história denominam “revolução neolítica”: o aparecimento da agricultura em três momentos: estrumação, irrigação e aradura. O exemplar cromagnon, filho da mãe mitocondrial, transformou-se de coletor em produtor. Dele se originaria a civilização em geral, em particular a civilização agrícola.”
Eu fiquei matutando de mim para comigo que aquela mãe toglodita, aquela Eva mitocondrial, abriu caminho para a civilização de hoje. Ela foi preparada para parir os descendentes que provocariam um salto qualitativo com a fixação de novos critérios de sobrevivência. A Mochileira tornou à narrativa:
“Saíram do paleolítico para o neolítico quase que de repente, da idade da pedra para a idade dos metais. Em breve seriam tecelões de lã angorá. A indústria têxtil rudimentar começaria a dominar a técnica de coloração dos tecidos com plantas selváticas tintoriais: a barbarrosa, o glastro e a reseda, originando várias maneiras de tecedura: do fio cruzado às urdiduras em xale e em rede. Os homens, em ocasiões rituais, passaram a usar tangas de pele de leopardo. Surgiram as profissões: tecelão, carpinteiro, oleiro, escultor. O cão aparece como animal doméstico.”
“Após a inseminação artificial de certa inteligência virtual na toglodita, Thundra e a tripulação da nave ganham altitude. Estacionam a três mil metros do solo para mais alguns testes de equipamento. Setenta e duas horas depois seguem uma trilha pelo hiperespaço, inserindo-se num buraco de verme intergalático."
— Buraco de verme, essa não, sorrio, isso é pornografia.
— Paciência, carinha, sorri amistosa. Em vinte anos você vai saber melhor que coisa é essa.
— Hiperespaço, conheço a teoria, mas, mais sorrisos, buraco de verme? Sem essa aranha!
(Como você sabe dessas coisas? Ideoplasmei a pergunta. É muita piração para uma cabeça de mulher se ocupar.)
— Em alguns milênios passaram a exercer a arte e a ciência da agricultura, prossegue ela, com a mesma naturalidade, sem perder a impetuosidade subliminar da narrativa. O povo do outro lado do rio consegue, afinal, chegar à margem oposta. Muitos morrem na travessia. Outros, aprendem a nadar.
— Valorizam mais os ciclos da lua, reforço a linha de raciocínio. Aprendem a pescar e a criar animais domésticos. De simples predadores, passam a produtores de armas, espadas e machados de sílex. Fortificam seu habitat e abrem caminho para a colonização de outros espaços.
— Wotorangotango é gradativamente substituído por formas mais civilizadas de deuses.
— O elo perdido que os cientistas patéticos buscam é a mutação de seu parente e ancestral remoto, concluo. Como quem registra a patente da descoberta da pólvora.
"Milênios depois, vários segmentos da raça descendente da selvagem capturada por Thundra, degeneram. Ela e a tripulação orgânica da nave hibernam. São despertados pelo computador de bordo, apenas para tarefas aleatórias, em alguns sistemas estelares com planetas habitados.”
"CHON, o computador de bordo, está programado por si mesmo, para estabelecer visitas milenares a planetas aonde a starnave tenha estabelecido algum tipo de contato, ou efetuado experiências com a fauna e a flora do lugar.”
"Trinta mil anos depois se encontra outra vez na Terra, que por um paradoxo semântico possui mais de 3/4 de sua superfície de água.”
"Através de sondas transparentes, de indescritível sensibilidade magnética, analisa eletrônicamente as variáveis seletivas de ação. A raça humana encontra-se à deriva. Vítima do tempestuoso oceano inconsciente das compulsões instintivas.”
"Uma ou duas famílias, em cada cidade de milhares de habitantes, descendentes da grande mãe cromagnon, podem ser poupadas da destruição. O resto da população é subproduto dos desvios hereditários degenerativos da unidade genética padrão do ancestral. Em outras palavras: lixo.”
"Um ou dois starnautas despertos do estado de hibernação, bastam para convencer às raras pessoas que não se entregaram à empatia coletiva das abjeções morais, a abandonarem rapidamente as cidades condenadas."
— Nos livros ditos sagrados, penso em voz alta, são chamados de "anjos".
— Nos dias de hoje, os cibernÉdipos mal desconfiam que a deterioração ambiental externa é produto da deterioração de seu ambiente interior: de seus corpos e mentes, de suas ideoplasmas. Conseqüência da mesma compulsão cromagnon que condenou à destruição, populações inteiras de cidades mencionadas nos ditos textos sagrados.
— Wotorangotango agora se chama Progresso, exclamo. Aceleradores lineares, probabilidades dominantes, fenômenos limites, coincidências significativas.
— Os cibernÉdipos condicionados pela Mãe Máquina, só trabalham em função dos interesses dela: eletrodomésticos sofisticados, estações orbitais habitadas, espaçonaves e sondas interplanetárias, monitoração orbital das telecomunicações: O "princípio de incerteza”.
— A Mãe Máquina fundou a nova cultura planetária para servi-la, acrescenta Amô. Há 35 mil anos o primata cromagnon possuía as mesmas ansiedades dos atuais primatas do colarinho branco que residem em Tóquio, Nova Iorque, Berlim, Moscou, Londres, Paris, São Paulo, Brasília, Madri, Lisboa ou Rio de Janeiro.
— A mesma energia rudimentar do arquétipo troglodita: crença cega nos dogmas e mitos econômicos, determinação compulsiva da vontade, medo da punição quando não está em condições de punir.
— Submissão ao domínio da ideoplasma coletiva pela autoridade messiânica elementar.
Meu raciocínio segue a trilha de suas motivações. Amô pára por momentos, dando um tempo em suas solicitações. Impressionado pelo tom linear de sua voz, inalterável por toda a duração da narrativa da parábola cromagnon, estou certo de que seu interesse estava em me interessar. Motivar-me a descobrir um novo continente subjetivo. Novo horizonte mediterrâneo: aprender a aprender a pensar. Em profundidade.
Como ela conseguiu ser tão articulada, distante, sem flutuação de ânimo?, conseqüente, racional. Sua respiração e outros fatores orgânicos e psicológicos, sem desvios, imperturbável. Como se, realmente, não estivesse nem aí. Duas décadas depois, hoje, me ocorre valorizar esses detalhes.
Passou a impressão de que a narrativa só deslanchou enquanto contraponto de meu interesse. Empatizo a intenção. Meu amor próprio reage, coisa de paulista. Uma mulher não pode ter mais pique do que eu para segurar a peteca de um lero, ou seja mais do que for.
Pergunto, auto-afirmativo, como quem acha insuficiente a conclusão:
— E Cristo? Ele alertou os herdeiros da grande família cromagnon contra a determinação destrutiva: "Ama teu semelhante igual amas a ti mesmo".
— Até crianças sabem que o mundo gira conforme outro princípio, replica: leva vantagem de teu próximo, livra tua cara primeiro.
— Um poeta de Estrada brasileiro, escreveu os versos: Estranha lógica/Dois ou três têm o Cosmo/Ao redor/A grande maioria tem a lama.
— Daqui a vinte anos eles farão subir sondas espaciais destinadas a explorar os mais distantes planetas e regiões além limites dessa galáxia. Suas sondas terão nomes de heróis mitológicos e de cientistas cibernÉdipos.
— A serviço da Mãe Máquina, sustento.
— Construirão telescópios espaciais para a exploração visual de outras galáxias. Mas não terão olhos para ver o desespero social de sua própria raça. Amô diz isso sem nenhuma emoção.
— Nem as lamentáveis condições ambientais do planeta. A quem servem essas conquistas? À compulsão imperial de domínio troglodita: pergunto e respondo. Quem se importa?
— À compulsão dos descendentes sapiens/demens da primata abduzida provisoriamente por Thundra é que não, confirma ela. Condicionados a servir pelos séculos e séculos à ingerência subliminar da Mãe Máquina, eles constroem uma civilização mitificando a palavra liberdade, subliminarmente. Ignorando que não têm nenhuma.
Pode o silêncio ecoar? Intensa, silente e queda quietude se sucede por minutos, não sei precisar quantos. Quando Amô voltou a falar suas palavras ecoaram, como se gradativamente vindas de um universo paralelo de significado privativo. Não sei como explicar melhor. A categórica convicção de que ela conhece tudo sobre a origem e a finalidade dos arquétipos da cosmogonia desse sistema solar.
— Quantos bilhões de circuitos impressos serão necessários ser trabalhados pela raça do outro lado do rio, para que descubra que poderá vir a ser mais do que uma extensão emocional, compulsiva, da lógica simbólica dos circuitos mentais e magnéticos interditos?
— Desta vez você foi longe demais. Não sei em quanto tempo conseguirei ordenar toda essa informação.
— Você já processou toda ela, carinha, tá sabendo? Um banho de mar, delícia agora.
De mim para comigo, pensei: o que uma analista de sistemas faz vendendo bugigangas de camelô? Fiquei imaginando como atuam as complexas conexões entre o córtex cerebral e as partes diencefálicas. As transmissões químicas e elétricas mais sutis do psiquismo cromagnon.