A MOCHILEIRA (Thundra) II
OS
PRIMEIROS
PASSOS
“A Profundidade está escondida.
Aonde? Na superfície."
Hofmannsthal
Segunda-feira de madrugada entramos num ônibus em direção à Praça Quinze. Fizemos a travessia da Baía de Guanabara via "Cantareira". Nossa jornada litorânea começou em Itaipu, onde chegamos de coletivo. Acampamos perto de Itacoatiara, apropriada para surfistas e banhistas e há os que se divertem a "pegar jacaré".
É um divertimento popular. A prancha é o corpo. Acompanha-se o impulso da onda quando ela começa a subir. Sobe-se com a massa da água, o corpo dentro dela, só a cabeça e os ombros de fora, deslizando na velocidade da onda, acompanhando seu impulso até ela quebrar na areia rasa.
Dezenas de barracas. As pessoas nas praias em busca do alimento essencial: espaço e ar livres de policiamento ostensivo. O melhor capital de giro espiritual ainda é a liberdade. Não a megalomania insensata: a passividade de cimento da estátua.
Não estou apreensivo com meu futuro. Sei que depois da aventura na Estrada, tenho a garantia de ter para onde voltar e ser aceito. Ahh, a possibilidade de ter por lar, exceto outro dia nômade.
As refeições diárias mais indispensáveis são as que alimentam as emoções das descobertas. Mas não se negligencia arroz, outros grãos, açúcar, manteiga, pão, nescafé, água de coco e das refeições em bares não se excluem cerveja nem proteínas de carne.
Caminho até a Praínha, uma enseada de águas tranqüilas. Um hippie aproxima-se e pergunta se estou afim de uma pedra. "Doze horas de pauleira, mano, vai por mim, cara, é quente".
Não estou sabendo o que é uma pedra ao certo. Nem quero dizer que ignoro. Como toda mercadoria tem seu preço, ganho tempo perguntando.
— Quanto vale? Você usou?
— Só metade, irmão, incrementa demais a cabeça. As idéias ficam à mil por hora.
Com certeza a Fórmula-Um perde longe para essa velocidade, pensei. Está falando de um barbitúrico, ou de ácido lisérgico? ainda na ignorância da oferta.
— Está em cima? dá pra sacar?
Da dobra da camiseta ele tira um papel transparente com alguns quadradinhos acastanhados.
— Cê parte em dois, bate em dez minutos. Este AC é da pesada, “brother”. Podes crer.
Havia lido "O Céu e o Inferno", do autor inglês Aldous Huxley. Não quero arriscar fazer uma viagem dantesca. Nessa coisa sou conservador. De dantesca basta a realidade.
— Não leva a mal, amizade, sou devagar nesse lance. Não tenho nada contra, não é a minha, falou?
— Tá limpo “brother”, dei um toque por que você e a mina estavam fazendo a cabeça com uma verdinha esta manhã, conclui. Se é careta eu não chego.
— Normal. Minha cabeça não vai além de uma verdinha. Isso aí, cara, vai firme, de leve.
O LSD pode ser uma boa experiência, mas estou inseguro para lidar mais profundamente com minha subjetividade. Tenho cisma de embarcar com velocidade na trilha do autoconhecimento, através do atalho subjetivo, do zen instantâneo fornecido pelo ácido. Estou inseguro para me apropriar de mim mesmo.
A natureza não anda aos saltos, não imita o Canguru. Estou devagar nesse lance. Conhece-te a ti mesmo é a coisa mais difícil do mundo. Quem se conhece, conhece tudo o mais. Convém não violentar meu ritmo subjetivo de autoconsciência.
Noite adentro e de madrugada, o ambiente improvisado do acampamento ao ar livre, parece uma paisagem primitiva. Suas fogueiras de galhos e folhas secas, resíduos vegetais da mata tropical atlântica. Pessoas agrupadas em volta das chamas, a se aquecerem, como na "idade do fogo", fora dos abrigos nas madrugadas frias.
A verdinha, fator de sociabilidade importante. Os hippies, gregários como os pássaros, voam em bando. Buscam a companhia de outros para voar em grupo: trocar idéias e impressões. Os bloqueios mentais somem provisoriamente. A mente fica livre para pensar. A troca de idéias, uma maneira maneira de lavar a alma das neuras.
Surge a possibilidade de cooperação, confiança recíproca, proteção mútua, solidariedade. Quando se está exilado, marginalizado dentro do próprio país, aprender a ajudar-se mutuamente é uma questão de sobrevivência elementar.
O exilado político que segue para o exterior através dos trâmites burocráticos de uma embaixada, está numa situação muito mais cômoda do que o exilado interno. Esse, prossegue cercado por uma política econômica e emocional de silenciosa e incômoda rejeição.
As diferenças de aparência são também diferenças de essência. Os hippies brasileiros são vítimas dos mesmos modelos de preconceitos que os negros do sul dos Estados Unidos.
Os cabelos longos, a mochila, a vida nômade, representam uma intolerável agressão ao status quo. Os caretas criam um clima de hostilidade física e anímica, sub-reptícia, verbal. Eles não querem questionar nada. Nunca. E esses jovens estão a questionar tudo, todo tempo.
O "cimento armado" do muro da vergonha subjetivo, é bem mais denso do que o concreto cristalizado, endurecido, fossilizado, dos edifícios. Itaipu está muito policiada. À noitinha houve uma batida policial. Um informante dos "hôme" dedurou a presença de erva numa tenda.
A cana chegou e deu uma geral nas mochilas e barracas. Como não encontrou nada nessa primeira investida, pode ser que volte amanhã, ou mais tarde. Eles sempre estão farejando motivos para reprimir.
Comigo estão cinqüenta gramas de manga-rosa, entocadas num espaço restrito da mochila, difícil de localizar. Porém, numa operação de repressão policial "pente fino", melhor não arriscar flagrante.
Visando sair fora da proximidade da repressão, combinamos atravessar um trecho da serra da Tiririca, após voltarmos de ônibus até determinado trecho da Estrada que dá acesso à subida da serra rumo a Itaipuaçu.
Às 22 horas um grupo de pessoas começa a escalada que conduz à praia de Itaipuaçu. Apenas começamos a caminhar, a sirene de vários carros de polícia se faz ouvir. A ação é conjunta, militar e civil, todos ansiosos por reprimir, passam fazendo a maior zoeira. Os carros em alta velocidade, como se estivessem apostando corrida, ou superlativamente ansiosos por fazer vítimas.
Um deles pára perto do lugar onde estávamos há poucos minutos. Parte do pessoal do grupo que não apressou o passo submete-se ao vexame de ser revistado, as garotas apalpadas, as mochilas devassadas. Melhor seguir Estrada, ouvir a zoeira amiga das cigarras e dos grilos habitantes da mata tropical atlântica. Ou o ruído da folhagem seca se agitando ao impacto das patas e dos corpos dos pequenos roedores noturnos.
Lanternas não são necessárias. As estrelas, o luar, iluminam a vereda. A subida é lenta. Uma mulher grávida caminha sem afetar os passos. Passam-se três horas. Estamos acampados próximos ao início da parte descendente da travessia.
Alguém comenta que, pela quantidade de carros, é possível que haja polícia também em Itaipuaçu. Melhor seguir ao amanhecer. Três ou quatro pessoas do grupo resolvem descer logo, a ansiedade de estarem próximas às ondas. De manhãzinha fumeamos um Bom Dia Brasil mais encorpado. Quase todos se habilitam a um tapinha no cigarro de cannabis.
Um hippie passa, mano e mano, um pequeno binóculo aos interessados em focalizar as cores da paisagem marítima ao longe, amanhecendo sob a luminescência da madrugada. Ele se tocou da qualidade da marijuana. Minutos depois de chegarmos ao sopé da serra, a caminho do lugar ainda incerto do acampamento, aproxima-se de mim dizendo:
— Carinha, safra rosa essa coisinha, sugere: em troca de uma presença desse cânhamo, você fica com esta lupa. É um trampo legal, pode conferir.
O binóculo, apesar de pequeno, tinha um bom desempenho de aproximação. Uma oferta, por melhor que seja, não se aceita de pronto. Por que ele não dirigiu a proposta a outro dos que fizeram a presença de erva para o baseado?
Intuindo minha indagação:
— Seguinte, cara, nasci na região de Petrolina, fronteira de Pernambuco com Bahia. Sei tudo sobre erva. Essa aí que você apresentou é da real.
Ao passar o binóculo às minhas mãos, a tonalidade de voz dizia da dependência dele com relação ao cânhamo. Mais do que aceitar negociar, estava-lhe prestando um favor, ganhando um aliado. Fiz a troca: o binóculo por uma presença de fumo.
Itaipuaçu deve ter de trinta e cinco a quarenta quilômetros de extensão. As praias de Jaconé, Da Barra e Ponta Negra, fazem parte de um trecho de ondas grandes, compactas. As correntes marítimas fortes, tornam as praias desse trecho do litoral pouco atraentes para banhos. Exceto a praia do Recanto, na divisa com Niterói.
Gosto de "trotar" à pequena velocidade. Não cansa, posso vencer grandes distâncias. Certa noite de luar aberto, ao voltar em direção à tenda, após correr no ritmo de trote pela praia, avisto de longe a Mochileira afastando-se da barraca. Normal, pensei, deve estar indo em direção a algum lugar reservado neste vasto toilette das estrelas.
Seu intestino funciona com britânica precisão. Costumo cronometrar no relógio Mido, presente da ex-namorada Tânia, sinistrada pela sádica violência da repressão, meus tempos de "running". Há, por vezes, a coincidência de chegar do exercício de correr, entre 21: 30 e 22 horas. Nesse horário, ou ela está se ausentando, ou não se encontra na barraca.
Planejamos seguir ao nascer do sol, direção Saqüarema. De Saqüá a Arraial do Cabo. Depois a gente sabe se sobra ou não pique para prosseguir de pé na Estrada. Longe de subestimar os incômodos de estar nômades, pisando o chão de areia úmido do litoral, a presença diária de certas precauções é exercitada.
Chapéu, óculos escuros, colírio, bronzeador e filtros solares. São formas de proteção semelhantes a uma esteira ou toalha estendida no chão, a separar o corpo do contato direto com as micoses de areia das praias.
Uma maneira fácil de motivar a resistência natural da pele à exposição solar prolongada, está em estar sob a influência vitalizante dos raios solares, de maneira gradativa. A membrana que reveste interiormente a pele vai se tornando espessa, reforçando aos poucos, de forma gradual, a proteção e a defesa natural das camadas mais internas.
Quando possível, arma-se a tenda sob a proteção vitalizante da sombra refrescante de uma árvore. Banhar-se diariamente em água doce ou da chuva, quando possível, usando sabão líquido (tipo dermacyd), mantém ácido o Ph da pele e do couro cabeludo.
Quem for muito chegado ao aconchego debilitante do apartamento, não deve programar os pés para uma jornada sob as estrelas da Estrada. Acredito mais hoje, do que há vinte anos, que, realmente, a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol. É preciso gostar dos elementos naturais da paisagem e saber defender-se deles.
Até dez horas as ondas ultravioletas do tipo "A" são benéficas. Das 10 às 15 horas os raios solares chegam à Terra sem inclinação. Predominam as ondas ultravioletas do tipo "B", danosas à saúde da pele, principalmente quando refletidas na superfície da água ou da areia.
Dois campings em Itaipuaçu, por uma pequena taxa de manutenção diária, dão direito a banhos de chuveiro e ao uso de uma precária mas funcional infra-estrutura de serviços. O sol nasce mais a Leste. Em sua direção seguem nossos narizes.
ILUSÃO
OU
ESTRANHA
REALIDADE?
Ao amanhecer de um dia nublado levantamos mais uma vez acampamento. Caminhar para ela e para mim é exercício lúdico. Gostamos. Seguimos pisando a areia branca da praia das Conchas. Vencemos seus mais de cinco quilômetros em pouco mais de uma hora. O equipamento pesa pouco. Pergunto se ela quer "dar um tempo".
— Tudo bem, nem sol nem chuva. Ideal para caminhar.
Não dá sinais de cansaço. Está de acordo em prosseguir. Ela não é tão sexo frágil assim. Sinto-me bem, mas Amô devia estar com a língua de fora. Pedindo para parar. Ledo engano. Estou surpreso com sua resistência física. O peso da mochila e a caminhada em nada afetou sua disposição de prosseguir a jornada pelas areias do litoral sudeste.
— Falou, digo em tom de desafio, se cansar é só dizer. Vamos no embalo desse sol brando caminhar um pouco mais.
— Podemos chegar à Lagoa da Barra, nesse pique, em três horas e meia, talvez mais.
Chegar até a lagoa da Barra, depois de Maricá, não é fácil. São quase vinte quilômetros. Ela acha que tem gás pra isso. Pago para vê. Neste instante ecoou em minha mente uma ideoplasma. Fala comigo por telepatia, ouço a resposta nitidamente: Muito além disso querido, podes crer. Olho para ela, indago como conseguiu transmitir tão nítido, aquelas palavras.
— A praia da Barra tem bares, prédios, camping, toda uma "infra".
— Sei, respondo sem dizer palavra, vamos manter o pique. Que experiência, comunicar-se sem verbalização, sussurrei.
— Prossiga na onda do pensamento, você pode transcomunicar-se, não fique imaginando como acontece. Está acontecendo. Faça fluir sem racionalizar.
— Como se consegue isso? é mesmo muito incrível.
— Não sou eu somente, a voz suave e nítida desafia minha perplexidade: você e eu. A sua e a minha mente. Nossos interesses estão unificados, somos parte da mente única universal. Nossas vontades identificaram-se, falamos a mesma linguagem, queremos as mesmas coisas, caminhamos na mesma estrada, no nosso amanhã intencional não há conflito. A mesma onda quebra na areia da praia para a mesma mente em você e em mim. Sou um contigo.
Quis prosseguir mas não consegui. Olhei para ela como se indagando se tinha realmente acontecido esse diálogo telepático. Minha atitude de dúvida rompeu o elo de ligação que nos mantinha unidos por telepatia.
Há um folclore em pesquisa médica a afirmar que a cannabis desvitaliza, tira a força física, o tônus vital de seus usuários. Comigo não acontece isso. Talvez porque meu consumo é mínimo: apenas um fino, o Bom Dia Brasil e, por vezes, a Sessão Coruja, antes de transar os instintos da libido: fazer amor.
A sensação presente e estimulante de, a cada quilômetro, estar vencendo os componentes negativos e obscuros desse tempo de autoritarismo desvairado e arbítrio social. Afastando-me das diligências do mundo ameaçador, mórbido, agressivo e sombrio, para não ter de me transformar em minha própria sombra.
Minha forte sombra. A parte sombria de milhões de pessoas transcende os limites de suas individualidades. Representa, neste momento, o modus vivendi de toda a sociedade. Sombras projetando sombras. No chão, nas paredes, nos objetos, nos espelhos e na psicologia própria e de terceiros.
Talvez esta minha experiência inusual, de caminhar exposto à radiação diurna e estelar noturna, cósmica, traduza minha esperança de poder elaborar um desempenho individual. Fora das frustrações, do não-poder realizar coletivo. Fora do padrão geral de desvio PSI. Padrão que move os rogos e as súplicas de uma sobrevivência num ambiente social e político absolutamente sem escrúpulos: autoritário, antidemocrático, inconstitucional.
Desejo ser mais inexaurível do que aqueles que desejam poder me exaurir. Impossível crescer mental, emocional e intelectualmente em ambientes forjados para manter infantilizadas as mentalidades.
Chegamos, enfim, próximos à Lagoa da Barra. A presença de garças e marrecos revela isso. Vencemos um espaço de mais de dezenove quilômetros em pouco menos de cinco horas. Uma média de quatro quilômetros por hora. Não é nenhum recorde de atletismo olímpico. Mesmo porque essa competição é espiritual. A natureza 99% das vezes não caminha aos saltos. Quem sabe comigo possa abrir uma exceção. Ah, essa possibilidade.
O objetivo deste livro não é traçar roteiro turístico. Se for publicado, não será por mérito da Secretaria de Turismo do Governo do Rio de Janeiro. Desejo seguir o roteiro de minha memória dos fatos. Da pessoa simples e transparente da Mochileira. Compreender melhor seu recado. Sua mensagem. Decifrar os mistérios dessa experiência modelo pé na Estrada. Essa, a principal motivação destas páginas.
Estamos há uma semana na região das lagoas. Da Barra até Saqüá são mais vinte quilômetros. Gostamos de caminhar, sim. Mas desta vez seguimos de ônibus. Saqüarema, paraíso dos surfistas. Ondas de mais de três metros sucedem-se a todo o momento. Areia fina e branca. Surf, bodyboard, jacaré: movimento, a mais bela das qualidades da humana natureza.
Na ponta sul, próximo à Lagoa de Saqüá, as provas de motocross são rotina. No planalto, a igreja de N. S. de Nazaré (1837), permite uma panorâmica visão da paisagem. De pé na Estrada chegamos a Arraial do Cabo.
A partir desse momento, o sol ergue-se no horizonte em frente. O astro de quinta grandeza nasce cara a cara. Privilégio: ver o centro do sistema solar emergir, de dentro da barraca. Seguem-se as praias de Cabo Frio, Búzios, Rio das Ostras e Macaé. Nesta, são vistos ancorados navios da Petrobrás no porto da praia da Barra.
O tempo passando. A paisagem e as emoções se reciclando. Minha simpatia pela Mochileira renova-se, apesar dos estranhamentos do dia a dia. A amizade prevalece, reforça a compatibilidade sensual. Nesses quase oitenta dias de Estrada, presenciamos muitas batidas policiais. Estranho, mas nenhuma delas chegou à nossa tenda. Até agora.
Entre Búzios e Rio das Ostras, passamos pelas praias de areia grossa e escura da Barra de São João, com seus quase vinte quilômetros de extensão.
Conforme a disposição física e meteorológica, seguimos caminho de carona, ônibus e a pé.
No Farol de São Tomé acampamos próximos a uma aldeia de pescadores na praia do Viegas, continuação da praia do Farol, onde estavam sendo realizados campeonatos de surf, pesca e hipismo.
Muita inflamação para nosso gosto pela intimidade. Após uma semana seguimos em frente: Cabo de São Tomé, praias do Açu, de Grussaí e de Atafona.
Na seqüência, as faixas de areia e mar de São João da Barra e da região de São Francisco. Das nove praias desse território, fronteira entre Rio de Janeiro e Espírito Santo, a última delas é Itabapoana. E a mais extensa, com sete quilômetros. O rio Itabapoana divide os dois estados e desemboca no mar.
A praia das Neves, primeira do litoral Capixaba, conta com quiosques, estacionamento, calçadão e camping com duchas de água doce.
Acampamos mais ao norte. No anoitecer do terceiro dia, volto para a barraca, depois de ir buscar algumas roupas que no dia anterior, uma senhora, dona de um quiosque, havia aceito lavar em troca de certa quantia.
A Mochileira parece dormir. Respiração lenta e profunda. Seu relaxamento se manifesta tão intenso, que chega a ser hipnótico (como se estivesse hibernando numa nave estelar rumo à estrela Ceta Reticuli 1 a 36 anos-luz distante da Terra), induzindo-me ao sono. O aconchegante chão da tenda, coberto de lençóis, convite ao repouso.
Ao despertar, pouco mais de três horas de sono depois, faltam 15 minutos para as 22 horas, ela está ausente da barraca.
Hoje, meu exercício extra de "jogging" vai ser um pouco mais tarde. Essa hora costumo estar chegando dele. Noite de luar escancarado. Conduzo-me à observação da paisagem noturna do lado de fora da tenda. Visualização nítida. A profundidade de campo chega até os limites visíveis do horizonte que a vista alcança. Uma embarcação de pesca, ancorada a uns trezentos metros, excita minha indiscrição visual.
Lembro do binóculo que o hippie trocou comigo por uma presença de cannabis ao chegarmos em Itaipuaçu. Os pertences de um andarilho são poucos. Ele estava esquecido num dos cantos da mochila. Suas lentes trazem a embarcação para mais próxima. Minutos depois desloco a direção do foco do barco pesqueiro até o visual de um cardume de golfinhos.
Eles estão se divertindo, aos saltos. O "show" visual prossegue por conta, também, dos miríades de reflexos do luar de verão sobre a superfície luminescente da água. Na poesia anglo-saxã usavam metáforas para chamar o mar de “caminho da baleia”, “caminho das velas”, “banho do peixe”, por que não “caminho do golfinho”? Observo agora a paisagem em volta. Surpresa: a uns 150 metros, vejo a Mochileira de cócoras. Vestida normal. Não está satisfazendo nenhuma necessidade física, orgânica.
Não há nenhuma intenção de policiar minha companheira. Não estou a me sentir culpado por fazê-lo. Pelo contrário. Fico interessado em ser indiscreto e bisbilhoteiro. Ela parece estar digitando um teclado dentro do espaço aberto na parte posterior da mochila.
Quero saber o que está acontecendo. Sorrateiro, chego mais perto para melhor observar. Um zunido gradativamente mais impertinente perturba sobremodo a observação. Ainda agora, hoje, mais de duas décadas depois, não sei ao certo explicar, exceto por hipótese, a sucessão ilógica dos acontecimentos.
Ela parou de digitar e fechou o zíper. Apressei-me em voltar para a tenda. Não gostaria de ser flagrado praticando voyeurismo. Policiando minha companheira de jornada pé na Estrada. As imagens do acontecimento se sobrepõem. Há dificuldades de ordem PSI em ordená-las.
Os gestos parecem seguir um ritual. Quero estar na tenda quando ela voltar. Apresso-me à-tôa. Estou bem mais próximo da barraca do que ela. Porém, ao chegar e puxar a parte do fecho ecler" que não estava aberta, hesitei em crer em meus olhos: a Mochileira está serena, sossegada, a saborear tranqüilamente uma refeição ainda quente. Pedaços de legumes cozidos misturados a uma porção de arroz integral, estavam sendo consumidos parcimoniosamente.
— Oi, você jantou? A voz tranqüila, como se estivesse tudo muito normal.
— Que, que, que é isso, gaguejo. Você não pode estar aqui e lá fora ao mesmo tempo. Que, que coisa essa... Não pode estar acontecendo.
— Você está bem, carinha? Viu alguma assombração? Um gnomo?, um elfo, uma alienígena? Olha para o prato e exclama: “Você está da cor desta cebola branca.”
Busco falar, a voz não sai. "Que vexame". Perplexo, insisto, reajo. As sílabas saem tropeçando na pronúncia das palavras.
— Naaada nãão, vou ver a lua luar, saaabe. Persisto em falar, digo meio sem jeito, saindo fora da incômoda situação: ela está um soomm, um sol.
Zonzo, do lado de fora da tenda, afinal. Estarei tendo alucinação? Perdendo controle sobre minhas percepções? Binóculo em punho, tento focalizar a garota que havia visto há poucos momentos, talvez não fossem tão poucos assim. Corro em direção ao local da observação. Insisto em fazer com que ela esteja nos arredores para que possa me sentir melhor, enquadrá-la no campo visual do binóculo. Inútil, não há ninguém semelhante a ela na paisagem.
Como pode ser? Meu estado de consciência, a percepção de meus sentidos está em ordem. Nenhuma alteração psicológica, exceto pasmo. Não sou chegado a alucinógenos. Minha razão cobra uma explicação. Inutilmente.
Houve um paradoxo de tempo, em meu continuum espaçotempo pessoal. Caminho em direção norte. Preciso acalmar as cobranças de minha racionalidade. Meditar sobre os eventos nesses últimos e estranhos trinta minutos.
Minha volta à tenda não aconteceu no momento em que a ela me dirigi, após observar os movimentos digiformes da Mochileira. Nunca aconteceu comigo perder os sentidos, "brancos" de memória, desmaio ou amnésia.
— Viajando, irmão?, indaga um hippie acompanhado de um casal.
A mina grávida segurando a mão do namorado olha-me apreensiva.
— Tudo bem, respondo. Acontecem coisas sob a influência desse luar.
A mulher instiga o parceiro com gestos de cotovelo, incitando-o a fazer ou dizer alguma coisa. Ele se tocou do lance e dirigiu-me uma pergunta por ele mesmo respondida.
— "Tô" sabendo, amizade. Você sacou os globos nas cores do arco-íris? "Tá limpo", cara, quem estava na praia viu.
— Beleza, não é? Desse tamanho, disse ela. Os dedos espalmados de ambas as mãos, bem abertas. Em seguida afastando-as para os lados, como se indicando um tamanho maior. Olhava para mim como se a querer apaziguar-me. Pasma com minha aparência.
— Seis bolas voando pelas praias, admirou-se. Coladas umas nas outras, manifesta-se o terceiro hippie. Uma delas entrou dentro da barriga de Leya, apontando para a mulher grávida, ela não sentiu nada.
— Na ponta sul, prossegue o namorado da mulher, os caretas ficaram todos com cara de "loque". Eu também fiquei meio bobo, explica, as bolas pareciam rodar e se mover e nunca, incrível, nunca se separavam.
— Ficavam sempre juntas, Leya mostra muita convicção em tom admirado. Elas eram tão finas, pareciam bolhas de sabão, não sei como ficaram sem estourar voando naquela velocidade.
— Quem estava amarrando um bode, dançou, assegura o acompanhante do casal, uma coisa dessa não pinta duas vezes perto de uma mesma pessoa. É uma coisa pra se lembrar toda vida. Com sorte, acontece uma vez.
— Que horas aconteceu?, elas podem aparecer outra vez? Com estranha esperança afirmo: ainda podem estar no pedaço.
— A gente sabe que elas não voltam, diz o namorado de Leya. Não vai acontecer outra vez, insiste. A gente sabe que não vai, é emocionante e belo demais. Coisas dessas não acontecem duas vezes, garante.
— Não faz muito tempo, cara, disse o amigo do casal. Entre nove meia e dez horas (21:30/22 hs).
Perdem o interesse pelo lero quando percebem que eu não havia visualizado o fenômeno. Conversaram comigo, deram-me atenção, na esperança de trocarem idéias e impressões com quem dele participou.
— Não viu, diz o namorado de Leya, não pode chegar junto no lance, enquanto se distancia acompanhado pela mulher e o amigo.
— Valeu mesmo, carinhas, agradeço, enquanto se afastavam.
Ergueram-se as mãos espalmadas, as pontas dos dedos para cima, numa saudação de amizade.
UMA
DILIGÊNCIA
POLICIAL
INCOMUM
"É bem verdade que a analogia não
prova nada, mas, de fato, sinto-me
mais confortável utilizando-a."
Sigmund Freud
Busco justificar os acontecimentos paradoxais. Sem êxito. Talvez estivesse sob influência do excesso de sol. Ou do inconsciente excitado de muitas pessoas próximas. Afinal, quem pode controlar a ascendência das leis físicas nos espaços abertos do dia, da noite, da madrugada? Raios cósmicos chovendo "full-time" sobre nossas cabeças desamparadas.
A estranheza de uma sociedade inexplicável, distinta da convivência capsular do interior das casas, dos apartamentos. Na Estrada se está órfão de tudo que não pertença aos fenômenos culturais da vivência alternativa. Uma alteridade radical atua nas consciências perplexas. Como se membro fôssemos de uma maçonaria de sugestões que poucos estão preparados para digerir.
Como assimilar a velocidade de renovação do anabolismo intracelular? A radiação magnética vinda de algures interagindo com a atmosfera terrestre, é, talvez, uma explicação para a amnésia, o "branco" mental, o paradoxo de tempo. Como a Mochileira conseguiu chegar primeiro do que eu à tenda? Anulando minha vantagem de estar mais próximo à sua entrada?
Volto à barraca uma hora depois do encontro com os hippies. Amô está terminando de ler As Palavras, livro do existencialista francês Jean-Paul Sartre. Ao lado, mais dois livros do também existencialista e ateísta alemão Martin Heidegger: O Princípio de Identidade e Ser e Tempo. Ambos em língua francesa.
— Tudo normal?
— Não sei, acho que sim.
— Saiu meio apavorado, quer falar sobre isto?
— Você viu umas esferas a cores? muita gente viu, circularam pelas praias como se fossem bolas em seis das cores do arco-íris.
— Ilusão visual coletiva, talvez, quem sabe uma manifestação de histeria coletiva, prossegue. Por que estão na Estrada? Porque não podem suportar a realidade de dentro de casa, responde, o sufoco dos empregos nos quais pagam para trabalhar.
— Sei, ironizo. Projetam frustrações, vêem coisas estranhas. Hoje é dia de piração do inconsciente coletivo.
— Um grupo armado, vindo das profundezas da caserna, (ela impõe com voz sempre suave, inalterável, seu ponto de vista), apoiado pelos empresários que levam vantagem, à revelia da vontade social, submete política, econômica e sadicamente uma sociedade a seus desvarios... Essas coisas causam seqüelas...
— Uma teoria pode ser completamente lógica e estar inteiramente errada. O visual das esferas a cores pode ter realmente acontecido, afirmo, são muitos os comentários das pessoas que viram.
— Pode, certo, mas pode ser a imaginação compensando a crueldade da vida insuportável.
O diálogo não vai avançar. As posições estão definidas. Não adianta malhar um lero nestas condições. Minha intuição sugere que as esferas a cores são reais, não alucinação coletiva. Associo esse estranho evento à minha inusitada amnésia. A teoria simplória de Amô terá sido apenas uma tentativa de camuflar uma possível relação de causa e efeito entre ambos?
Neste momento uma voz desafinada, vinda de uma das tendas, canta ao som de um violão: "Eu, você/Nós dois/Já temos um passado/Meu amor/Um violão guardado/Aquela flor/E outras mumunhas mais..."
Flui de minha genitália um fluxo de energia, desejo, tesão. A mente sobrecarregada de incertezas, cepticismo, não mais que de repente esquece o cansaço. O olhar penetra no espaço entrepernas da Mochileira. Num salto felliniano seus pentelhos castanhos estão a roçar o pinto a crescer, a aumentar de volume.
As línguas buscam os orifícios dos corpos. O sabor afrodisíaco de maresia incrementa a sensualidade, um afeto até então desconhecido. Seus seios quase cabem inteiros dentro da boca ávida por devorá-los aos poucos, parcimoniosa, contidamente, começando pelos biquinhos grossos, plástico. O tempo contraflui algures. Eu o detenho aquiagora. Um desejo sem idade, de todas as idades, pára o universo.
Este poder inusitado, esta glória, como se mago fosse, detenho entrededos essa enorme e tão rasa profundidade: esta mulher tão jovem e tão de todas as idades. Sua xota fermenta em plenitude, os seios quentes, as coxas juvenis abrem-se numa loto adorável. Implacável penetro a terra conquistada, todas as querências inconfessáveis realizam-se nesta delirante suavidade. Transcendente beatitude, serpente e maçã. A idéia de Eros e Psiquê, a realização generosa.
A eterna juventude deste sorriso não ouse nunca se fragmentar com a idade, com as eras. A verdade deste orgasmo exulta, acontecimento definitivo, cósmico, orgia dos sentidos: bigbang intangível, bem-aventurança dos testículos a roçar na vegetação pubiana desta fêmea. Ímpeto, claridade solar, telúrica, calor uterino aquece e envolve de desejo lupino. A penetração da sonda de nervos até os primeiros pingos, o conseqüente arrojo do jorro, a garoar nitroespermaglicerina. Ahahahahahahahah.
A onda orgasmo jorra areia na xoxotastuta, uma, duas, três vezes. Recomeço esta efêmera e insone realidade. Usurpar estes últimos resquícios castos desta declinação situada neste equador celeste de odor orgíaco. Fresta baquiana, atalho sísifico, passagem para dimensões inexploradas, contatobaco de sementes futuras de tão antepassada seiva em direção ao âmago deste arquétipo feminino, estelar.
Ao contrário de Sísifo, sinto-me natural, inesgotável e útil. Deslizo mais uma vez em água corrente em direção aos mistérios voláteis desta fugaz estrela, fragrância rosácea de bacalhauzinho. Infindável redundância mística, ao mesmo tempo perecível carne.
Ahahahahahaahahah, explorar esta trilha neste vinco de última geração, atalho para universos paralelos onde Tânatos, inutilmente, buscaria uma morada.
Amanhece. O ímã sol atrai para fora da barraca. Há pouco madrugava. Agora, dia solar. O tempo interior pára. Há mais do que aviões de carreira no ar. Mergulho numa onda mais volumosa. O normal nessa praia são ondas com menor volume de água. A praia das Neves é rasa. O astro brilha no céu tropical e em meu coração vagabundo.
Estendo os membros sobre a superfície protetora da toalha. Melhor aproveitar o sol agora. Apesar do céu azul, limpo, claro, há nuvens de porte pequeno e médio com pouco espaço entre elas. Um habitante da cidade diria ser prenúncio de tempo bom. Sol radiante. Na realidade indicam tempo instável, queda de temperatura e nebulosidade.
Uma hora e meia depois confirma-se minha previsão de mudança brusca das condições atmosféricas. À formação anterior de nuvens substituiu-se outra de maior densidade. As brancas e límpidas em céu claro e azul, transformaram-se numa espessa camada cinzenta, por onde mal conseguem passar os raios solares.
Rajadas de vento encrespam a superfície do mar. Fazem curvar a copa das árvores litorâneas. Longe de abater meu ânimo, a chuva anima. Estar dentro ou fora da barraca, enquanto a chuva chove, pode ser tão estimulante como um dia de sol no zênite, a pino.
Quarenta e oito horas depois, os quatro elementos se harmonizam: mar (água), sol (fogo), terra (paisagem) e ar (prana, vitalidade). No momento existem duas opções: seguir a linha do litoral, ou voltar à cidade do RJ. Subir a Pedra da Gávea.
Amô chega e exclama:
— Nada melhor do que fazer amor e ler livros. Totem e Tabu, A Interpretação dos Sonhos, esses precisam ser lidos.
Eu estava lendo Estrela da Vida Inteira e Caetés, após terminar o livro de contos roseano que contém A Terceira Margem do Rio. Depois, está na agenda a leitura de um livro de Drummond e outro de Jorge de Lima.
Passa por minha mente a idéia de que estou a viver uma situação semelhante a do personagem do conto de Guimarães Rosa. A sociedade organizada militar, política e econômicamente, como uma metáfora do rio com suas duas margens, a esquerda e a direita.
Num flash de alguns segundos vejo-me personagem fantasmagótico da Terceira Margem do Rio, a rejeitar as outras duas, em busca da superação do emaranhado de conflitos que agem dentro da água corrente de minha subjetividade.
A 3ª Margem é o caminho maior, mais difícil, mais complexo, necessita de um distanciamento com as personagens do lado direito e do lado esquerdo do curso do rio da história da vida. Estou a buscar, desta forma, uma oportunidade pertinente, real, de individuação, fora dos esquemas estabelecidos. Uma chuva fina começa a chuviscar, garoa o comentário:
— E banho de chuva, depois de um dia de sol e mar.
— O pessoal vindo do nordeste diz que Itaipava e Itaoca são duas belezas de enseadas, próximas à Ilha dos Franceses. Podemos chegar lá. Há uma caverna com inscrições na rocha, ainda não decifradas.
— Estou sabendo que o lugar conta com uma vila de pescadores, há caiaques de aluguel e camping, uma boa infra, respondo:
— Sou mais a Pedra da Gávea, vamos chegar nela. Dá um tempo nessa seqüência, insisto. Depois a gente pega um bus e volta aqui, ou segue rumo ao litoral paulista.
— Pode ser muito surpreendente, Amô comenta, como quem sugere uma advertência. Os livros de Daniken estão fazendo sua cabeça, querido.
— Sem essa de "deuses astronautas". Na Gávea me interessam os símbolos rúnicos, anteriores às navegações colombianas. Gravados por navegadores que descobriram Santa Cruz muito antes dos predadores da península Ibérica aportarem no Monte Pascoal.
— Podes crer, carinha, muito antes mesmo. Na Pedra da Gávea, em suas imediações, houve muitos desaparecimentos e mortes inexplicáveis. Elas ocorrem há bastante tempo.
— Disseram-me que os que tentam penetrar no interior do monumento, descobrir seus segredos, perecem de forma estranha.
— Contam-se às dezenas os desaparecidos naquela área. Pessoas isoladas e grupos dispostos a desvendar o enigma.
— Na Gávea interessa-me os registros das navegações pré-colombianas, que diz você?
— Domingo de madrugada.
— Está valendo.
As dúvidas a propósito da observação da digitação da Mochileira, assim como os acontecimentos não presenciados por mim, das esferas a cores, persistem. Ficar indiferente ao branco que pintou depois, quando ela chegou antes de mim à tenda, apesar de eu estar bem mais próximo a ela, não consigo. A cisma persiste. Se todas as outras vezes que ela se ausentou no mesmo horário, não tiveram nada com satisfazer necessidades fisiológicas?
O nicho fechado pelo zíper na parte posterior da mochila aguça minha curiosidade. Desperta meu interesse. Conflito. Como fazer para abrir esse "feche ecler" sem trair sua privacidade? A intimidade permite que, sem ser impertinente, solicite que mostre seu conteúdo. Como abrir o zíper sem alimentar complexo de culpa? Não vou ficar só na ansiedade.
Algo me diz que talvez não seja o momento certo para tais solicitações. Há um certo bloqueio mental instintivo. Ela está sabendo de minha inquietação a esse respeito. E se não houver nada dentro do nicho? Parecerei ridículo em minha busca? Não vou precipitar os acontecimentos. Ela pode estar preparando para mim uma revelação, não sei. Melhor confiar em minhas percepções.
De sexta pra sábado, muita inflamação. Pessoas de diversas procedências ainda comentam a aparição das estranhas e belas bolas transparentes, a cores.
— Espelhavam, dizem alguns, a imagem das pessoas que conseguiram olhar de perto, e a paisagem em volta delas, crêem outros. Provocaram sonhos muito singulares, afirmam testemunhas.
Alternativos e caretas irmanavam-se nos comentários sobre o inusitado evento. Nos coletivos, bares, restaurantes, carros, rodoviárias, e nos acampamentos. Não aconteceu exatamente como Amô previu: "Amanhã mesmo maior parte deles não terão certeza se viram mesmo algo ou se foi apenas ilusão de ótica".
De noite, três viaturas da PM estacionaram ostensivamente na ponta sul do calçadão da praia das Neves. O oficial de comando instruiu os subalternos a promoverem uma operação repressiva modelo "pente fino". Qualquer ação verbal em defesa do direito das pessoas de não serem invadidas na intimidade de suas tendas, tinha por imediata resposta, socos, ameaças, pontapés e cassetetes.
No melhor estilo orangotango vigente. Os orangotangos que me perdoem a ironia da comparação. A batida policial aproximava-se de nossa tenda. Dois policiais entusiasmados com o poder a eles delegado pelo arbítrio autoritário desvairado da ditadura, chegaram, cheios de empáfia, e foram logo entrando.
Começaram a fuçar cada canto da barraca. Pensei que poderiam se dar bem. Nossa proximidade irritou a ambos. Cassetete em punho exigiram documentos. Mostrei meu RG. O milico pegou e ficou olhando pateticamente, como se não soubesse o que fazer. Balançou o pescoço para um lado, depois para outro. Olhava interrogativo, como se não compreendesse o que tinha em mãos. Os músculos da face contraíram-se ao redor do nariz, a cafungar o ar.
Como se nunca houvesse visto um RG, admirava o pedaço de papel plastificado de meu registro geral. Seu parceiro de repressão curvou-se sobre a mochila de Amô. Os braços ao comprido do corpo, pendentes e pendulares. A coluna vertebral dobrada para frente. O corpo balançando em movimento simiesco. Pareciam dois antropóides que haviam fugido do zoológico e ficaram apatetados com descobertas que mal podiam compreender.
Passo de atônito, surpreso, a temeroso e apreensivo. Os macacos são irracionais. Podem cismar de passar da observação à agressão sem nenhum constrangimento. Queiram desculpar-me os macacos pela comparação. A simples farda dava aos policiais o direito de arbítrio. De invasão domiciliar das tendas, e, se irritados (por qualquer motivo), de agressão às pessoas.
Olho para a Mochileira. Mantém-se impassível, tranqüila, como se fosse a coisa mais normal do mundo a encenação de comportamento regressivo dos PMs. Saltei de lado erguendo o braço destro, na tentativa de me esquivar do golpe involuntário do policial que mantinha entrededos meu RG. Percebi que estava apenas insistindo para que pegasse de volta a carteira de sua mão. A situação muito mais constrangedora para eles.
Pego de volta o RG, não sem dificuldade. Seus movimentos hesitantes, pendulares, faziam balançar a mão do militar de um para outro lado. Segurei seu pulso com uma das mãos, firmando por segundos, a trêmula insegurança do gestual. Com a outra mão saquei meu registro.
Cruzaram os olhares embaraçados, sem saber ao certo o que estava acontecendo. Pareciam coagidos pela própria agressividade. Após algumas caretas, fungados e piscar de olhos que pareciam involuntários, simultâneos à contração dos músculos da face, voltaram-se para fora da tenda, como se apressados em sair da situação de inesperado e intenso desagravo.
Não pareciam os senhores samangos de há pouco. Chegaram "cheios de razão", patrulhando, reprimindo, coagindo. Ameaçando nossa liberdade de estar acampados pacificamente. Saíram aos pulinhos da barraca. Corpos arqueados como se fossem primatas. Antropóides de origem anterior ao ancestral cromagnon do atual Homo sapiens/demens.
Estavam envergonhados. Mesmo que apenas provisoriamente, de si mesmos. Meu ombro esquerdo superior tremeu, num ímpeto muscular muito rápido e desintencional. Creio empalidecer até à lividez. Se essas marionetes agressivas da hierarquia inferior do autoritarismo desvairado houvessem descoberto a "marijuana", eu seria preso e espancado como traficante, senão como subversivo, no distrito policial mais próximo. E se intensificarem a operação repressiva? E se tivessem pegado o exemplar do livrinho vermelho de Mao? Não poderia livrar-me da acusação de subversão.
Amô sai da barraca como se nada houvesse acontecido. Respiro profundamente umas dez vezes, jogando de uma só vez, para fora dos pulmões, o ar aspirado. A rotina respiratória tranqüilizou-se. Dirigi-me para fora da barraca. Os dois policias de há pouco, estavam fora de combate. Destacaram-se dos demais em direção à beira-mar.
Um deles vomitava, a espinha arqueada. Tropeçando nos próprios passos, prostou-se no solo molhado da praia. O outro, ajoelhado na areia, pressionava com as mãos a testa para cima. O rosto teimando em curvar-se em direção ao vão das pernas. Tossia compulsivamente. A cara de aparência tungada, vermelha como um pimentão vermelho. As veias do pescoço saltando para fora da pele inchada. As veias realçando no pescoço.
A cena provocou geral indiscrição. Dezenas de curiosos aproximaram-se. Os PMs eram o centro das atenções. Outros militares vieram socorrê-los, indagar o que estava acontecendo. Relaxaram a agressividade inicial da diligência. O oficial da operação ordenou que levassem ambos a uma das viaturas. Foram conduzidos ao pronto socorro hospitalar.
Nesta noite, apenas dois detidos nesta área do acampamento. Os polícias que permaneceram por mais tempo perderam o ímpeto inicial de reprimir e molestar os hippies acampados. Pelo menos desta vez. Alguém perguntou a um dos policiais:
— Que aconteceu com “eles”? os caras estavam mesmo mal.
— Congestão, retrucou o militar, como quem lamenta o fracasso da operação "pente fino". Ameaçador, vitupera, ânimo e raiva mal contidos:
— Vocês se deram bem: hoje foi dia da caça.
Pessoas começaram a comentar os acontecimentos, até depois dos policiais terem se ausentado do lugar. Curiosos indagam como os milicos começaram a sentir o vexaminoso mal estar.
— Valeu companheiro. A exclamação vem de um mochileiro.
Aproximando-se de mim, outro hippie a comentar:
— Você mostrou muita força, cara, os samangos botaram o rabo entre as pernas.
Havia certa paranóia no ar. Nada de facilitar com os "hôme". Houve quem acreditasse que os tiras ficaram de bobeira por causa de minha suposta intervenção parapsicológica. Até dizer que não é nada disso, que babado não é bico, haja conversação. Nem tento explicar. Alguém mais ponderou:
— Não dá moleza, "brother". Estou saindo fora desse pedaço. Sujou. Mais tarde eles cismam e voltam à carga. Levam muita gente em cana, dizendo que estão presos para averiguação.
— Inventam motivo, intervém uma garota. Esvaziam as mochilas, mandam o pessoal se despir.
— Forjam flagrante, diz mais alguém. Todo tipo de baixaria.
— Praia não é lugar de repressão, alerta um jovem. É sítio de lazer.
— É isso aí, confirma outro cabeludo. Polícia pra quem precisa de polícia.
— “Eles” querem mesmo é perturbar, protesta uma mina. Estão sabendo que aqui não é nenhum QG do partido comunista.
— Na real, estão querendo é maconha pra fumar, ironiza mais alguém. Vai vê o comandante deles está na maior fissura.
Para mim está cada vez mais nítido que há, realmente, uma política maquiavélica interessada em perseguir gratuitamente pessoas fora do esquema de pagamento de impostos e da rotina do cartão de ponto.
Desarmamos a tenda. Vamos sair fora dessa jurisdição policial como se fôssemos fugitivos da lei. É certo que os dois PMs não tinham condições psicológicas de imaginar a causa da regressão à uma condição lemuróide.
Os doutores do plantão do pronto atendimento hospitalar por certo se apressaram em diagnosticar ingestão de alimento estragado, princípio de congestão, ou diagnóstico similar.
Alguns mochileiros vão permanecer no acampamento, se vierem a ser pressionados para fornecer uma descrição verbal de nossa aparência, fornecerão informações intencionais distorcidas. Pelo menos é isto que algumas pessoas garantem que vai acontecer.
— Cada coisa a seu tempo, diz Amô: cada dia com sua carga de eventos.
Amanhecemos em Itabapoana. Voltamos de coletivo até São Francisco. De São Francisco a Travessão. Daí a Campos, Macaé e Rio das Ostras, onde pernoitamos numa pousada na praia do Bosque. Quatro dias depois, pela rodovia estadual 106, o ônibus afasta-se do roteiro das praias. Segue pelas margens dos 220 km2 de águas transparentes, rasas e salinas, das margens da Lagoa de Araruama.
Desse lado da rodovia estão as cidades de São Pedro da Aldeia, Iguaba Grande, Iguaba Pequena, Araruama. Do outro lado da Lagoa, em sentido inverso (Oeste-Leste), espraiam-se as praias de Massambaba e Grande, em Arraial do Cabo. As emoções de peregrinar pelos espaços abertos das praias do litoral fluminense, começando a se transformar em memória.
É como estar vendo o mundo pela primeira vez. Do ponto de vista das pessoas que não nasceram com as mordomias e as facilidades oferecidas por seu extrato social privilegiado.
Se a organização da sociedade nega os meios para que grande quantidade de seus membros possa obter desenvolvimento intelectual, nem fornece aos jovens possibilidades de integração na mecânica normal de produção de bens de consumo e serviços, a marginalização sedimenta-se enquanto natural conseqüência desse evidente desprezo social.
Agora sei um pouco o que significa fazer parte da experiência vital, dos questionamentos de uma geração emergente. O conceito histórico e social de geração, não deve ser ensinado apenas da perspectiva do interior de uma sala de aulas, ou de um campus universitário.
Apenas a experiência direta com a realidade proporciona uma visão crítica essencial das contradições da superestrutura política e econômica global. Neste momento, tal superestrutura não possui nenhum respeito pela qualidade de percepção, educação e convivência social com as novas gerações emergentes.
“PERGUNTE
AO
PÓ”
Enquanto o coletivo segue rumo à Baía da Guanabara, imagino que a história oficial se negará a contar como esta parcela importante, quantitativa e qualitativa, da juventude, foi simiescamente reprimida pelas forças armadas a serviço da ditadura.
A história oficial dos textos acadêmicos lembrar-se-á de mencionar esses jovens? Este esforço coletivo para sair da camisa-de-força de tudo quanto é velhacaria institucionalizada que não serve mais para nada, senão para enferrujar o amanhecer? O esforço coletivo desta geração será riscado dos livros de aprendizado pelos escribas dos faraós da capital federal?
Talvez algum membro desavisado das gerações subseqüentes, nascido pós os anos de chumbo, ao ler este livro possa confundir essa fuga antecipada da repressão, como medo de um perigo inexistente, paranóia, como nas histórias infantis: jovens a correr do bicho-papão.
Acontece que o bicho-papão existia realmente. Os instintos básicos, os mais destrutivos, estavam soltos nas pessoas fardadas de uma polícia militar sob o comando de egomaníacos ideologicamente polarizados, que definiam quem era ou não o inimigo a combater impiedosa, por vezes, gratuitamente. Havia um interesse espontâneo, infundado, pela agressão.
A “autoridade” de farda não queria saber de ouvir nada. Sarrafo antes e perguntas depois. Os interrogados nunca tinham razão. Se eram espancados pelos policiais, esses tinham sempre o motivo certo, ou inventam algum. Como naquele ditado árabe machista chauvinista: “O homem pode não saber porque está espancando, mas a mulher sempre sabe porque está sendo espancada”. Talvez essas regressões simiescas agenciadas pela ditadura de farda, odiassem ver, nos jovens de cabelos compridos, a anima, pessoal e coletiva, que ignoravam a existência em si mesmos. Achavam-se os donos da cocada preta. A sociedade representava a mulher coletiva (arquétipo) que devia, sempre, ser espancada.
Valia para os “hôme” o princípio da violência armada. Como naquele desenho animado para crianças, onde o herói infantilizado não se cansa de repetir: “Eu tenho a força”. A repressão desvairada estava oficializada pelo AI-5, desde o governo Costa e Silva. Acontecia impunemente desde os primeiros momentos do desgoverno Castelo Branco.
Aristocratas, burgueses e militares, todos os reacionários radicais, deram-se sinistramente os braços, a virtude estava com eles e a perversidade com o inimigo. E eles viam esse inimigo em todos os lugares, inclusive nos jovens de cabelos longos e idéias que se projetavam no horizonte do Terceiro Milênio.
Os jovens hippies eram considerados uma mistura fedida de idéias inconvenientes, em meio ao corpo social do nacionalismo armado de uma ideologia extremista que conduzia o país a uma regressão cultural coletiva. Simiesca.
A repressão impiedosa, implacável, dos que estavam na vanguarda da cultura burguesa vulgar e irresponsável, não poderia ser subestimada. O bicho-papão, ansioso pelo conflito covarde, no uso e abuso da desrazão, foi milhares de vezes responsável por uma política de hostilidades que, não raro, incluía perseguição, aprisionamento, tortura e morte. O Moloch militar estava à solta.
O sadismo de Tânatos, o desejo de domínio, os impulsos primitivos dos de farda, a serviço dos instintos agressivos reprimidos de uma burguesia satanizada, que, apesar de todas as mordomias, necessitava criar o muro da vergonha da repressão ambulante.
Qualquer soldadinho primário tinha todos os direitos de agressão sobre qualquer membro da população civil.
Duas décadas me distanciam da narração destes acontecimentos. O tempo passaria, e transformaria toda esta história real em areia, em pó. Não fosse contada aqui, como poderia ser preservada sua memória?
De todas as histórias, uma estava por acontecer. Reproduzo-a por simbolizar aqueles tempos: Cafuso, formado em Letras na USP, e a mulher, uma dentista vegetariana, pais de garotas gêmeas de doze anos, foram presos. O Cafuso, um tipo mais que conservador, reacionário, achava-se muito sabido, por dentro das coisas da literatura, venerava tudo quanto é autor de origem anglo-saxã e não perdia a oportunidade de esnobar autores brasileiros, com opiniões tipo: “Graciliano Ramos é ilegível”.
Esse cidadão caiu gratuitamente na antipatia de um maquiavélico esbirro dos tribunais militares da ditadura. Cafuso foi acusado injustamente de pertencer a uma organização de guerrilha urbana que assaltava bancos, com o objetivo de angariar fundos para movimentos camponeses que nem sequer existiam.
Os paranóicos militares acreditavam em qualquer denúncia, por mais delirante que fosse o dedo-duro. Um comando militar prendeu o casal para averiguações, torturou Cafuso e a mulher.
A dentista, depois de quarenta dias foi solta, caiu na simpatia do major torturador. Quando Cafuso foi liberado pela repressão, cinco meses depois, a mulher estava vivendo um apaixonado romance com um de seus torturadores. A esposa dele passou a viver com o tal major, como numa peça dramatúrgica de Nelson Rodrigues.
Comentários à boca miúda espalharam ter sido Cafuso libertado graças ao envolvimento da mulher com esse oficial. Do contrário seria, talvez, mais uma vítima na lista dos desaparecidos. Na cova rasa e coletiva de um dos cemitérios clandestinos.
Cafuso perdeu a boca da sobrevivência fácil, era a mulher que o sustentava, terminou entrando de vez para uma segmentação da guerrilha urbana, posteriormente exilada, na mesma época em que foram soltos os prisioneiros embarcados para Cuba, após a negociação que se seguiu ao seqüestro do embaixador americano, retido numa casa no bairro de santa Teresa, no Rio de Janeiro.
A vida de Cafuso, não mais que de repente, mudou de oito para oitenta. De um reacionário empedernido, brasileirófobo, com medo mórbido e vergonha de reconhecer o valor de ser brasileiro, quando voltou ao Brasil, após anos de exílio, devido à anistia ampla, geral e irrestrita, conseguiu preencher uma vaga de professor de literatura numa faculdade particular em Mogi das Cruzes.
Hoje, Cafuso reconhece e elogia incondicional e merecidamente, os nomes tradicionais da literatura brasileira: Mário de Andrade, Machado de Assis, Graciliano, Guimarães Rosa, Drummond, João Cabral, Oswaldo de Andrade, Euclides de Cunha... Cafuso aprendeu a lição, nunca mais vituperou contra a literatura nacional, parou de babar encômios gratuitos e de fazer discursos laudatórios a toda bobagem literária, premiada ou não, de origem anglo-saxã.
Desculpe-me o leitor pelo salto narrativo a esse acontecimento. Volto ao momento em que estávamos correndo do bicho-papão armado, com seus mercenários agressivos, que tantas vítimas estavam fazendo, mesmo entre pessoas que nada tinham com o engajamento polarizado na luta armada. O lema hippie “paz e amor” servia apenas para que a repressão se sentisse mais à vontade no criar pânico, inibindo as relações eróticas e ideológicas (idéias, idéias), reforçando os laços afetivos no interior dos grupos de Estrada.