REFLEXO DA MOÇA DESESPERADA
- Você é louca – diz a moça desesperada.
- As pessoas estão rindo de você – insiste, enquanto coça a cabeça infestada por piolhos.
Naquele sanatório, a paciente de prenome Márcia, chamada docemente pelos funcionários de “moça desesperada”, vai tecendo a realidade paralela e lançando mísseis imaginários em todas as direções.
No fundo, ela não sabe ao certo onde está o alvo. Perdeu a noção quando se viu sozinha,
na casa mofada, abandonada pelo homem que julgava ser seu para sempre.
A moça desesperada acredita mesmo nos extremos.
Tudo para ela gira em torno do SEMPRE e do NUNCA.
Nos devaneios nos quais se perdeu, esqueceu a existência do TALVEZ
Descartou que o SEMPRE acaba e que o NUNCA pode ser a afirmação de muito querer o que ela – a moça desesperada - se propõe a desdenhar.
As altas doses medicamentosas parecem sem efeito.
Não raro, a moça desesperada surta e passa a atacar a mulher louca.
Na imaginação estacionada no pátio de sua mente estática,
foi a mulher louca quem tomou dela o HOMEM que julgava ser uma propriedade.
Nos corredores, pessoas com problemas bem maiores, tentam abrandar a fúria que assola o coração da moça.
E ela ri todo o tempo.
Acredita que é a melhor e credita a volta do seu HOMEM para a mulher louca pelo poder que, supostamente, esta tem para sustentar o HOMEM, que julgava ser seu.
Desconhece a história dos dois.
Entrou no meio e, sem saber, embaraçou-se nas teias da ilusão do eterno.
A moça desesperada vive entre altos e baixos.
Murmura pelos cantos
Inventa pessoas que não existem, xinga desesperadamente a mulher louca.
Ela tem, assim, uma arquiinimiga.
E a mulher louca, como ela diz, continua a viver sem se preocupar com a posse do HOMEM que a moça desesperada,
mesmo negando veementemente, reclama para si.
A mulher louca cuida da vida, do corpo, da alma.
Não se importa se riem dela ou se falam dela.
Ela não tem mais a pressa que aprisiona a moça desesperada.
Aliás, nunca teve.
Já viveu muitas histórias. Amou como pode e soube.
Agora, ama sem nada esperar.
A mulher louca não coça a cabeça nem alimenta piolhos com seu sangue
Não xinga, não morre de medo de ser deixada pelo HOMEM que a moça desesperada pleiteia como a um troféu.
Na verdade, a mulher louca já tem os troféus mais importantes: serenidade e paz de espírito.
E assim, neste cenário, a mulher louca ouve as ofensas da moça desesperada e não acha graça.
Simplesmente sente pena.
E pena, sabe a mulher louca, é o último sentimento que se deve sentir por si mesmo ou por outrem.
Mas, sem ter outra forma de ver tal desespero, pena é o que sobra da mulher louca para a moça desesperada.
Talvez a mulher louca se apiede da situação e, então, passe a sublimar o desespero da moça, que também já é mulher, embora não saiba ou se recuse a aceitar.
O HOMEM da moça desesperada assiste a tudo num misto de graça e medo.
Ele teme que a moça desesperada se interponha entre ele e a mulher louca que,
cansada de tudo isso, prefira seguir sozinha, deixando para a moça desesperada a sensação de pertence que a motiva.
Sensação irreal na qual a moça desesperada se apega como o fazem os insanos a uma cruz pesada e sem dono.
A mulher louca já deletou a voz e a existência da moça desesperada várias vezes
Mas o desespero da moça parece um grito abafado no silêncio aquietante do amor que o HOMEM lhe dispensa cotidianamente e que ela – a mulher louca – retribui naturalmente.
Porque a mulher louca sabe que o amor não amarra
Muito menos se cola num diário amarelado de queixas.
A mulher louca distingue amor e paixão
E, mais que nunca, valoriza a companhia e o carinho sem amarras.
Já a moça desesperada segue desfigurando a face da própria juventude
Enrugando os dias com tolices e desatinos.
E quanto mais ela assim o faz, mais a mulher louca brilha em sua simplicidade.
Porque a loucura, além de patológica, pode ser um sinônimo de felicidade e, quiçá, genialidade.
Louca, a mulher toma um banho com ervas e se deita ao lado do HOMEM
O mesmo que, por um breve espaço de tempo, esteve com a moça desesperada.
No peito macio, todas as noites, ela escuta o coração do anjo que escolheu para acompanhá-la, dando-lhe abrigo e a chave da porta para quando for necessário partir.
A moça desesperada escreve com letras garrafais imaginárias no teto da enfermaria:
-SUA LOUCA.
E, sem se dar conta, o espelho a reflete.