Fragmentos e cismares 35
[BRUMAS DO AMANHECER]
As brancas manhãs como os sonhos usam um véu de organza. Entre elas, eles e nós, do outro lado do véu, tudo é possível... tudo se cria e se desvanece... tudo parece ter corpo mas é só um sopro, ideia, sensação. Há uma mistura estranha, algo anárquico e sublime... como se fossem as torres de Babel de Bruegel com pinceladas de Turner... diluídas... simples impressões.
Deixo-me ficar viajante nessas horas, o coração me escutando e eu a ele, balanço dos dias, da vida, conversa com as últimas estrelas, a lua já pequena, o canto dos bem-te-vis. Há um resto de aroma das damas-da-noite no ar. Logo será imperceptível, coberto pela fumaça dos ônibus e veículos.
Já quase amanhece em São Paulo, na data de seu nascimento. Cidade amada! São Paulo que carrego no peito, com orgulho e zelo.
Traços de rosa e laranja já se esboçam no horizonte. A aragem fresca me revigora, junto com um copo de água gelada.
Da janela do apartamento vejo a paisagem urbana, tão bela!, harmônica, serena. Dia bonito fará.
Um contraste, porém...
A paisagem da minha alma resta triste, infinitamente sombria e machucada. Meus olhos de poeta e gente bóiam entre as pálpebras, bolsas de lágrimas, inchadas de desalento.
Adianta perguntar aos Céus por que determinados fatos acontecem de um modo tão diverso do pensado, sonhado, do que se desejou? Como que regidos por mãos manchadas de sangue e uma batuta em forma de açoite a reger o caos?
Se adiantar, faço a pergunta e imploro por uma resposta urgente e já delongada...
O dia aos poucos se completa.
Fecho a janela, fecho-me na dor, busco apaziguar-me no sono,
que não sei se virá em silêncio como um dia de feriado nesta metrópole.
Parabéns pelos 457, Sampa!
foto: Raphael