Água-furtada

A linguagem é uma primavera minuciosa. Cada palavra pipoca, como um botão de flor em uma explosão de vida, e se despetala pelo vento. Sua essência atômica, indivisível, viaja léguas e atravessa a pele do mundo, e cada nariz que sente seu olor, o nota de forma diferente. Ora indigesto, ora perfumado; ora nauseante, ora sandálico.

A linguagem se multiplica, de símbolo em símbolo, de grafema em fonema, de anáfora em catáfora, de parágrafo a parágrafo. Atemporal, a língua nasce, irrepreensível, a língua cresce, e a língua nunca morre.

A linguagem se expande, como uma manta infinita, como um firmamento, e cobre tudo, e preenche tudo, e sustenta tudo. E sua miríade incontável de significações, e sua infinidade de acepções que não cabem no espaço ou no tempo, mas cabem no milésimo de um segundo.

A linguagem, lábaro do razoável, é o solo mais fértil do universo.

E, por mais colossal que possa ser a linguagem, e por mais laudatória que se consiga, não expressa, e nunca o fará, o que há de basicamente adverso entre o ti e o em volta. Por mais plácida a gramática, por mais entrincheirados os sinais da minha face, não existe signo correto, não existe idiossincrasia que baste, não há representação exata para distinguir perfume e incenso, receio e fobia, inércia e estática, romance e catarse.

Teus olhos, eu não chamaria olhos, pois olhos não voam sobre os edifícios, olhos não saltam pela minha sala, olhos não espreitam conversando. Olhos não têm o costume de deslizar pelas sinuosidades da minha mente e repousar, sussurrantes, sobre os meus ouvidos. Esses não são olhos. Teus olhos eu chamava motivos, cada um, e –agora em dupla – razão.

E tua boca não seria boca, pois bocas não engolem mundos, nem viram camas, tua boca seria oceano, e seria eterna; e teus dentes seriam peixes. Tua língua seria onda, ou maremoto, e eu seria um misto de pirata e náufrago, com o peito uma união de pilhagem e sal, de invasão e afogamento, em um amálgama, indissociáveis, meio mar aberto, meio enseada.

E eu chamava teu canto de alento, e eu respirava teu canto, e me alimentava do teu canto, e chamava teu canto, alma. Assim que dava para morar em ti, e teu corpo seria casa, e teus braços seriam cercas, e tua pele, tinta. E o teu ventre, água-furtada.

Assim que dava para morar em ti... mas os meus braços eu chamava espera, e a minha mente eu chamava medo. E o meu corpo eu chamava sombra. Assim que dava para morar em ti, mas permaneço estático, como acorrentado, enquanto as minhas entranhas são caos. Eu sou o édipo enfrentando a Esfinge. Eu sou o sísifo a mergulhar o Tartarus. Eu sou o homem a evitar o abismo.

Esse vão imenso, essa gruta infinda, essa eterna noite que nos separa! Não há uma palavra que aí não caiba! Não há uma ponte que tenha tamanho, não há deus que não seja tragado por esse vácuo vágado!

Não há termo que alcance a vastidão dessa distância. Que explique ao mundo esse interlúdio entre o mesmo e o outro, esse universo infinitesimal que a nós dois aparta; essa linha subliminar, subcognitiva, que faz do que deveria ser uno, duas ilhas diametrais em um universo.

Não há termo que expresse o interstício que faz da unicidade, da indissociabilidade dos contíguos, o desespero e a mortalha dos ausentes.

Joao L Terrezo
Enviado por Joao L Terrezo em 12/01/2011
Código do texto: T2725002