OS REIS
LOVE IS A MANY SPLENDORE THING. De novo assistimos ao filme e choramos pela amada a ver a imagem do amado morto descendo a colina para tomá-la pela mão... pela mão... Choramos, no coração do apartamento solitário, pelos sonhos mortos... nossos mortos... a vida que não houve do rei e da rainha jamais coroados... jamais coroados... jamais. O filme apagou, mantivemos a penumbra. Estendeste as mãos e enlaçados, fundo, dançamos por um tempo sem tempo ao som de Love is a many splendore thing. Isto foi ontem, sábado, e hoje, domingo, ainda guardo nas mãos as tuas lágrimas de ontem. Não secam. É tarde demais. É tarde.
O rei voltou de repente com as flores todas da nossa adolescência, com as pedras todas, coloridas, densas. Flores pétreas. Pedras floridas. O rei de palavras mágicas. A pedir-me guarida no abismo. Há um século, corríamos pelos campos. Campos puros em nosso olhar de adolescentes tão antigos. Voltou de repente o rei com as palavras que lhe doei e das quais nem me lembrava,mas ele não se esqueceu de nada e nem de mim. Voltou para nos lembrar de nós. E colhemos a precária e tardia adolescência dentro do abismo de palavras dos nossos abismos próprios, diversos.Não nos cabe ficar, não nos cabe. Só de novo o partir, de novo, como se tantas partidas coubessem dentro do possível. É tarde demais. É tarde.
O rei vindo dos longes países trazendo nas mãos os poemas da eternidade nossa, tão nossa como a estrela cadente que cai na alma e fica... insuspeita e secreta como toda estrela que se preze. O rei em fuga dos próprios calabouços para a liberdade de nós nos fios dos nós sem desate no manto da tarde que não nos pertence mais. Não nos pertence mais, mas canta e chora incessante em nossas veias. Para sempre.
NO SEMPRE TARDE, NA TARDE, SEMPRE, O TEMPO QUE NUNCA MORRE, O TEMPO QUE NINGUÉM NEM NÓS TEMOS O PODER DE MATAR.
O rei que abandonei com palavras rudes. O rei, estrangeiro rei, rei companheiro de corpo noites dias rios ruas vida adentro vida afora. Incógnito rei no meio do mundo, no vazio do mundo. Rei sem descendência. Rei solitário carvalho.Rei que não me pode mais conter nas próprias veias. Rei diante de cuja ausência me quedo em silêncio, bastarda. Rei que bani do nosso reino, com seis palavras mal-ditas. É tarde demais. É tarde.
Um rei que veio do nada e fica batendo à porta, com palavras do futuro. Fica batendo à porta, que mantenho fechada. Um rei do país de onde vem meu nome. Decerto de algum passado comum, remotíssimo, incógnito Decerto. Mantenho a porta fechada.É tarde, rei, chegaste tarde. Procura outra rainha que possa reconhecer-te.Deixa-me aqui entre os meus, pranteando-lhes as vidas dolorosas, coladas à minha. Deixa-me velar os sonhos dos meus reis. Deixa-me aqui, a velar os deles, os nossos sonhos mortos. Deixa-me aqui, orando por todos nós ao Deus único.
É TARDE, DESDE ANTES DE ENTRARES E NÃO ENTRARÁS É TARDE. É TARDE. É MUITO TARDE.
Zuleika dos Reis
Texto original de 14 de junho de 2009, com algumas modificações no dia de hoje, 06 de janeiro de 2011.