PROSA POÉTICA INESTÉTICA
(Um tímido balanço de quase nada)


I

Então era isso a vida
De eu me perder em palavras
E tudo indefinido e em desconforto
De uns versos no silêncio atracados
Um quase poema que já nasce morto
E todos os sonhos mal acabados
O tempo pulsando e eu absorto
Então era isso a vida
Construída em poesia que definha
De hoje nem um desenho dar certo
Nenhuma sombra de qualquer ilusão
Que de repente eu tinha
De tudo ser e eu nem estar por perto
De eu nem partir quando nada vinha
Ou de eu vir sempre num destino incerto
Então era essa a sina
A porta aberta de uma sala vazia
Sem janela um voo que a nada se destina
E a dor de eu saber sempre que sabia
Ser real o que nem se imagina
E tão cruel tudo aquilo que silencia
Ser numa noite dessa que se descortina
Essa emoção tão erma, vã e vazia
Essa luz morta que nada ilumina
No que ouso ainda chamar poesia


II

Então era isso viver
Somente isso o que tinha de ser
Perder o viço, a juventude, a vontade
Ser pela metade sem uma outra metade
Perder o dia, a manhã, o amanhã, a graça
O gozo talvez de um supremo instante
A noção do plausível da realidade
A aceitação do que se faz desgraça
O movimento incerto e inconstante
Do que não é nem nunca foi verdade
Por ter sido somente sonhos e devaneios
A falta de crença na suposta felicidade
O acabar do tempo nas horas sem freios
O perceber-se no oco dos pensamentos
De sorrir apenas na imaginação
De se embrenhar tanto em sentimentos
E deixar que dilacerem tanto o coração
De se ver apenas nos maus momentos
E perder os bons na falta de recordação
Na ação absurda de todos os esquecimentos
No esquecimento das coisas o que elas são
Sem o devido benefício dos consentimentos
Ir com todas as coisas para onde elas não vão
De querer poder trocar todos os aborrecimentos
Pela doçura ínfima de uma ínfima ilusão
De não dizer nada e nada aconteceu
E de querer nada e nada ser meu


III

A tristeza não tem janela nem porta
A folha morta nunca sairá do chão
O bom da angústia é que nada conforta
O bom do vazio é que não tem solução
Fica então tudo aqui na palavra morta
Como folha morta que não sabe do chão
A noite sem estrelas sempre escura
E sem a lua fica assim tão mais nua
O bom da dor é que ela não dura
Dá sempre lugar a outra dor mais sua
O amor não é feito de matéria pura
Ele se apura duma paixão sempre crua
Então era isso a vida essa coisa insegura
Esse haver paixão onde o amor não atua
Porque o amor atua na matéria impura
E não se depura tanto assim a esmo
O amor se perpetua como coisa inacabada
Como o que se faz esquecido de si mesmo
E que em sim mesmo sempre se acaba

Então era isso o amor
Essa doença que se instala
Que o viver pré-determina
Emoção insana que não se cala
Essa dor absurda que nunca termina
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 02/01/2011
Reeditado em 29/07/2021
Código do texto: T2704202
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