[A Formiguinha Mensageira]
Sonho histórias inteiras, começo, meio e fim. E são histórias complexas, com toques surreais e, várias delas, enredando-me no chamado mundo espiritual, em cuja existência eu não acredito. São histórias tão bem tramadas que, ao despertar, não consigo de modo algum imaginar como tais fatos oníricos surgem-me na mente. E como eu descreio também da existência do inconsciente, fico com nada, isto é, fico, para horror da mente treinada no método científico, sem onde, sem como... isto é, sem nada mesmo; fico só com o sonho. Não deveria dizer isto, mas eu já me acostumei a ficar sem explicação.
E foi assim, que uma noite dessas, visitou minha máquina de sonhar uma formiguinha preta, bastante simpática, como vão ver a seguir. É uma historinha curta, e da qual, eu despertei sorrindo, sorrindo... sorrindo como uma criança sorri de algo que os adultos, de modo algum, considerariam engraçado!
Como sempre, em todos os meus sonhos, o céu era o de Minas, o ar era o ar do Planalto Central, em tempo de seca... Eu percorria uma trilha que partia lá do meu Chalé Amarelo [o recorrente chalé amarelo onde descobri o mundo...]. Estava comigo um colega, cuja idade regulava com a minha, uns onze ou doze anos. E devíamos entregar um recado escrito, um bilhete que eu levava enroladinho na mão direita.
Quando a trilha adentrou uma capoeira plana feito uma mesa, paramos para um descanso, e sentamo-nos nas raízes de uma frondosa árvore. Suponho que era uma sucupira, pois as suas folhas eram miúdas como as da sucupira que eu, impiedosamente, num rasgo de loucura, mandei cortar — pois, acabado o plantio de um cafezal que fiz invadir o cerrado, ela restou bem no meio de um dos carreadores, iria atrapalhar a passagem reta de tratores. Até hoje não posso suportar a imagem da árvore, já tombada, com as folhas trêmulas ao vento... Pois... ficamos ali sentados, em silêncio, eu, debaixo de uma árvore, e ele, de outra árvore, e os dois, debaixo desta [mesma] árvore... até que o meu amigo me disse:
"olha essa formiga preta; está nos rodeando, e é com você que ela quer falar!"
Sorri...
"imagine, uma formiga falante... absurdo, que imaginação, a sua. hein?"
"...pois observa os movimentos dela... presta atenção, ela parece ansiosa até!".
E de fato, a formiguinha vinha até perto dos meus pés descalços, parava, mexia a cabecinha, mexia as anteninhas... Levei mais longe a brincadeira do meu amigo:
"você quer alguma coisa... e o que uma formiguinha tão simpática como você pode querer... não sei". Ela balançou as anteninhas.
"Não está vendo? Ela disse "sim", com este movimento das antenas!"
"Ara... formigas sempre balançam as antenas... deve ser o seu modo de captar o que lhes interessa do mundo... Vamos ver..."
Arranquei um ramo de capim e dei para ela. Ela ergueu a cabecinha, agarrou o raminho e deu umas voltinhas, mas ficou por ali, segurando-o firmemente, e ficou quieta, como se me olhasse, como se esperasse meu próximo movimento.
Desviei minha atenção da formiga, e retomei tento do objetivo da caminhada,
"...vamos... o sol já vai alto, temos de chegar lá!".
Na planura do cerrado baixo, a trilha quase reta, apenas ligeiramente se desguiando de velhos cupinzeiros, ou de uma árvore isolada, e em seguida, retomando a reta anterior ao desvio... A casa aonde devíamos entregar o bilhete... Qual casa... parecia se afastar de nós! Mais a gente caminhava, mais não chegava... impaciência da boa!
De repente:
"Olha ela, vem vindo atrás de nós!"
Parei espantado... olhei, é lá vinha ela, e ainda trazendo o tal raminho que lhe dei lá atrás, sob a árvore.
"essa formiga é louca... onde já se viu uma coisa dessas... Vai nos atrasar, mas vamos esperá-la".
"estou curioso... Eu disse que ela falava, mas agora, vejo que tem inteligência, capacidade de seguir a gente, feito um cãozinho!"
"ara... inteligência de formiga... vai ver, ela apenas não gosta de se sentir solitária!".
E fomos caminhando, agora mais devagar, pois a formiguinha preta não desistia de nos seguir, e também, não soltava o raminho de capim. Quando chegamos à casa, havia um degrau alto na entrada da varanda de piso avermelhado, liso. A formiguinha parou ali, pois não podia subir o degrau liso... Fui até ela, com intuito de ajudá-la, pois agora, já não queria perdê-la de vista. Ela ergueu a cabecinha, e parecia querer me entregar o raminho... Peguei a ponta do raminho, e ela o soltou nos meus dedos. Parecia cansada...
"está cansada? Vou lhe ajeitar uma caminha!"
Ela balançou as anteninhas. E o meu amigo:
"está vendo? Isto quer dizer sim, na linguagem dela!"
Apanhei um punhadinho de capim seco, amassei nas mãos, pus uma folha seca, ajeitei numa cantinho, logo abaixo do degrau, de modo que ela não fosse pisada. Ela subiu na caminha, abaixou-se, e ficou quieta, quieta, como se dormisse... Quando voltarmos, ela já terá sumido... pensei.
Entramos na casa, entregamos o tal bilhete, tomamos chá com biscoitos de polvilho, nos despedimos, não íamos ficar para o almoço não. E o caminho era longo... Ah, e nos entregaram outro bilhete, a resposta daquele que trouxemos...
Lembrei-me da formiguinha; será que já foi embora... Quando chegamos ao degrau da varanda, ela já estava desperta [se é que dormiu...] e parecia nos esperar... parecia não, ela nos esperava mesmo! Foi a gente passar por ali, e lá vinha ela, perninhas ligeiras, atrás de nós.
"acho que ela nos adotou" — disse o meu amigo.
"que ótimo, agora temos uma formiga companheira, como um cachorrinho!"
Mas logo íamos descobrir uma capacidade ainda mais fantástica da nossa amiguinha... ela era mágica, isto é, ela fazia uma mágica interessante! Ao chegarmos na mesma árvore, fizemos uma parada. Ela veio vindo, e ficou por ali, nos olhando, olhando... Enrolei o tal bilhete, fiz um canudo comprido, do tamanho de um maço de cigarros, toquei a formiga com ele... Ela agarrou-o, e em seguida, o tal bilhete encolheu! Ficou do tamanho do raminho do capim que eu dera a ela na viagem de vinda!
"olha só o que eu fiz! E agora, o que a gente faz, o que a gente faz? Ninguém mais consegue ler o que estava escrito no bilhete!"
"não o que você fez, mas o que ela fez... que coisa... ela encolhe as coisas até ficarem portáveis... para ela!"
"... e será que ela devolve, isto é, faz o objeto retornar ao tamanho original?!"
Como se me ouvisse... e ouviu mesmo... a formiguinha aproximou-se, ergueu o minúsculo rolinho com o bilhete, oferecendo-o a mim... Fiquei com um certo receio... o que ela faria, se eu tocasse o rolinho de papel, preso ainda entre suas garrinhas.
"vamos... pegue-o, veja o que acontece... que medo... o que uma simples formiguinha poderia fazer de mal!"
"... acabamos de ver que ela não é uma simples formiguinha, destas que a gente vê por aí..."
A formiguinha esperava minha ação. Quando toquei o papelzinho, ela soltou-o em meus dedos e... e o papel voltou ao tamanho original!
"que absurdo... agora, temos uma formiga mágica! E poderá ser nossa mensageira; temos uma formiga carteira! Garanto que você se lembra do caminho até aquela casa, não é formiguinha?"
Ela balançou as anteninhas, parecendo satisfeita com o ofício que acabara de conquistar.
"aí está, como já sabemos, isto é o "sim" dela! Agora, é só combinar os lugares certos para ela apanhar e entregar as mensagens..."
Quando chegamos em casa, novamente, não sei por que, ela me pareceu cansada... fui até o quintal; no pé do tronco da goiabeira, havia um buraquinho escuro, deixado por alguma broca... Escavei um pouco mais, para o tamanho dela, nem precisava, foi só para lhe dar mais conforto. Forrei com folhas miúdas, secas. Ela entrou, e novamente, ficou quieta, quietinha...
E ela ficou morando ali, no quintal do meu chalé amarelo... Vez por outra, parecia ter sumido... eu ia lá no buraquinho e lá estava ela, dormindo... ora, uma formiga que dorme... e mágica, encolhe, e aumenta os objetos, quando ela quer! Uma vez só encarreguei-a de levar uma mensagem... Levou... e trouxe a resposta! O pessoal daquela casa já sabia com lidar com ela! Depois...
... depois, eu acordei! E acordei sorrindo, de como pode, um sujeito da minha idade, sonhar algo assim, tão pueril... tão pueril!
Talvez, sempre talvez, este meu sonho, se tratado por alguém habilidoso, pudesse ser transformado numa história infantil. Eu fiz apenas o relato dos fatos, tais como vividos, isto é sonhados na noite de 20 para 21 de dezembro de 2010. Para mais do que isto, não tenho competência.
[Penas do Desterro, 24 dezembro de 2010]