LIÇÕES DE PÂNICO
... E de tanto conviver em repartições públicas, talvez por isso, e também por ter sido desde cedo educado para a inércia, é que tenho o cérebro compartimentado igual a um armário. E de cada gaveta que eu abro salta um monstro esquizóide que dificulta ainda mais a minha vida entre os homens e suas mulheres. Dir-se-ia que eu detenho o controle das chaves deste armário e que assim fica fácil para eu selecionar as emoções e o tipo de reação que devo ter para melhor lidar com elas. Acontece que, se num primeiro momento isso representasse uma vantagem (e o foi de certa forma), hoje isso só me prejudica, uma vez que as fechaduras já estão gastas e a própria numeração e seqüência das gavetas no armário se acham já bastante embaralhadas. Assim, tem sido freqüente eu abrir a gaveta indevida e então deixo escapar um monstro que já não posso deter ou controlar no meio das pessoas (e ele salta sobre as mesas não se importando com nada e rindo do meu pânico e pranto que se seguem). Não mais possuo os códigos dos segredos e estou destinado ao abismo deste viver sozinho e equivocado. Torna-se quase necessário eu ficar o tempo todo em casa com as mãos amarradas para inadvertidamente eu não libertar o monstro de minha irrisão. Penso que se já não sou aquela pessoa que antes escrevia versos em silêncio com a humildade dos homens banidos, é melhor então que eu incorpore de vez essa minha condição de Mr. Hyde e que possa ser deixado (entre a pena e o escárnio) no depósito da existência como uma mala, um arquivo, um armário ou uma grande caixa de madeira adornada com seis alças para que as mãos dos meus amigos me façam o favor e a justiça de colocarem-me numa cova iníqua na parte alta do cemitério de minha cidade. Na beira da estrada, entre a poeira e o barro da estrada. No meio da estrada, entre a poeira e o barro do progresso. No meio da estrada, como um entrave ao livre trânsito dos pedestres e de suas vidas irmanadas.