Eu queria morrer por meia hora
Eu queria morrer por meia hora
Penso no porque das coisas vivas, no porque das cicatrizes doloridas, no porque do bem e do mal. Penso num etc e tal de coisas que se avolumam.
Vejo as ruas que mesmo estáticas aparentemente, elas andam, cantam fados e contam histórias.
Certa vez lembro que sentei num banco perto do rio que corta minha cidade ao meio, e quase de frente a uma ponte antiga de ferro, comecei um diálogo inesquecível com ela...
Ela falava manso, sabe? Aquela voz gostosa que só os sábios têm? Leve, morna e densa... Ela falava da profundidade das coisas e das peles por cima das verdades... Falou-me que sentia uma saudade tão grande...
Dos anos idos, das carruagens, que a ela, pareciam brincos a enfeitá-la... Ela dizia:
Poetisa, as carruagens me faziam carinho, passavam lindas sobre mim, não tinham pressa de me abandonar, e as pessoas que eram ninadas dentro delas pelo som do caminhar, me viam...
Olhavam meus arabescos, observavam minhas paisagens e suspiravam enquanto eu sorria... Lembro até de certo poeta, silencioso que sempre vinha me ver. Ele sentava ali pertinho do rio e escrevia, escrevia...
Eu ficava tão curiosa a imaginar o que ele riscava com aquela pena linda... E queria mesmo perguntá-lo, porque ele me olhava tanto...
Certo dia ele sumiu... Mas lembro-me que antes de ir, passou a mão delicadamente em meus ferros, e falou baixinho quase num sussurro: você é linda...
Sinto saudade dos sons suaves, ah! Eu odeio buzinas! Hoje me sinto tão só poetisa... Mesmo que invadida diariamente Por carros, pessoas, animais, são apenas pessoas, não são poesia, como foram um dia...
Depois daquela conversa com a ponte, eu segui para dentro do Recife antigo... E sentei no marco zero para sentir aquela sabia brisa de tudo... Ela era tão feliz e cantava canções, assoviava a rodopiava perto de mim, perguntei a ela, de onde tu vens?
E ela respondeu: quem disse que eu venho? E sorriu...
Tornei a perguntar: para onde tu vais?
E ela já com um sorriso ainda maior nos lábios me disse: eu ia...
Mas já que a poetisa veio me ver, vou ficar por aqui um tempo assanhando teus cachinhos, gostei deles...
Perguntei então, se há muito ela estava por ali...
Ela ficou mais mansa, e mesmo com os dedinhos de vento em meus caracóis se acalmou e começou a me contar de tudo... Dos mascates, das mulheres e navios, das luas cheias e seus segredos, dos beijos apaixonados que ela sempre via naquele lugar e que até hoje a fazem dançar ainda mais forte...
Da mudança de som, quando antes trotar de cavalos e hoje buzinas estridentes...
Falou da arte que sempre passa lá, toma um sorvete, come uma pipoca e brinca com o bobo da corte que fantasiado de festa ilumina o lugar.
Levantei, me despedi da brisa... E cai no rio.
Afundei longos anos... Naveguei com sereias... Beijei golfinhos... Acenei para a barca que cortava o rio, lenta...
E voltei a mim...
Eu queria morrer só por meia hora, para falar com a morte... Mas acho que morri por uma vida inteira, devo ter errado o bonde... E ai, nasci na época trocada... Com a roupa apertada, um relógio de pulso, uma chave de carro na mão... Que jamais será capaz de me levar de volta a minha real vida.
Neste instante, eu escuto as ruas cantarem tristes fados...
Lindos fados...
Ai! que saudade de mim.
Márcia Poesia de Sá – 10.12.2010