Navio Sem Leme
As coisas mudaram um pouco.
Preconceitos foram debelados
e conceitos foram reformulados
e talvez eu esteja ficando louco.
Mulheres que se ancoravam no balcão de bar
não corporificavam a idéia que eu tinha
de mulher
para casar.
E quem aqui falou em casamento?
Falo aqui de uma mesa pequena e redonda
ao lado do circo ao ar livre da loucura
da Grande Cidade, do Grande Coração Financeiro
ao lado do Parque que acolhe as meretrizes e os velhos.
Perdendo a virgindade de cerveja escura
sentindo o vento frio nos tornozelos
e um meio-ciúmes do imbecil da mesa ao lado
e jogando mais e mais molho de tomate no bauru caro.
Mastigando e ouvindo a reprimenda por escrever cartas suicidas
e tentando convencê-la de que um suicida não é covarde
e ela não dá o braço a torcer
mesmo após confessar que tentou se matar aos dezesseis.
"Eu também tentei aos dezesseis", falei, "mas eu fui covarde",
continuei, "e não levei adiante", concluí
e ela não se dava por vencida, porém não era convincente
mas usava o perfume mais inebriante de todos.
E na rua ao lado os carros paravam no farol vermelho
e na mesa ao lado os caras continuavam cobiçando-a
e dentro de mim as engrenagens começavam a funcionar
de forma desordenada, e, no entanto, cautelosa.
A cerveja escura não clareava as idéias
e as bexigas insuflavam e tinham de ser esvaziadas
e ela foi, após avisar no papel reciclado, esvaziar a sua
e, no espelho, observar a maquiagem.
Ajeitar a mecha atrás das orelhas.
Colocar uma bala na boca.
Eliminar remela dos olhos
Essas coisas que os homens supõe que as mulheres fazem.
Quando vão ao banheiro.
E voltam mais imponentes do que quando foram.
Com sua bexiga vazia.
Com seu hálito fresco, com seus olhos limpos
com a maquiagem impecável e com o demônio no olhar.
E arriam suas partes nas cadeiras de madeira
sem ter noção da quantidade de sexo que estão sobre
e um silêncio grita no ouvido do Pobre Homem
que faz uma ponte com o arrimo de um cachecol azul.
Azul e perfumado com a mais inebriante das essências
envolto nas minhas mãos que tremem, apesar de estarem quentes.
Elas tremem de ansiedade.
(Ciganas olham o futuro onde, mesmo?)
Minhas mãos tremem para que eu as abrigue no cachecol azul
assim como o parque abriga os mendigos e os loucos e as damas da noite.
Mas ela volta do banheiro com o ar renovado,
mais leve, mais calorosa e,
quiçá,
vulnerável?
O que me encoraja um pouco.
O que me faz tomar fôlego.
O que me deixa com ar sorumbático.
Com os carrões parando no farol ao lado.
Com as rameiras angariando clientes.
Com os mendigos tiritando de frio.
Com os dois homens da mesa ao lado torcendo.
E ignorando as mãos que tremem.
E Ignorando a promessa secreta de (tentar) manter o auto-controle.
E ignorando o possível espalmar daquelas mãos frias no meu rosto.
E ignorando um futuro repleto de confusões mentais.
De quase-atropelamentos.
De frustrações com terceiros.
De pieguices às duas da manhã.
E ignorando um futuro repleto de busca incessante.
De procura de olhares.
De poesias abstratas.
De rascunhos inconclusivos.
E sim, ignorando toda a possível malsinação futura
me lanço em direção aos seus lábios
após ter silênciosa carta branca ao segurar suas têmporas
e ignorar todo o planeta com suas camadas de gases.
Com todos os seus giros.
Com todas as suas tempestades.
Com todo o seu oxigênio.
Com seus vulcões cuspindo lava.
E, depois, caminhando com o frio a açoitar os dois corpos unidos pelas mãos,
procurando um estabelecimento que venda café às cinco da manhã,
eu penso:
"Será que fiz bem ao recuar daquela faca aos dezesseis de idade?"