Uma história das Arábias
- Como a ti mesmo te chamas?
Indagou um pseudo poeta a si mesmo.
Como não conseguia se decifrar
Enganou-se ao pensar,
E olhando a sua volta
Intitulou-se mestre,
Julgando que da vida tinha maestria.
Os teus muitos anos vividos o distinguiram ímpar.
Gostou do título e assim pensou ser mestre.
A vida à sua volta passava e repassava
Tal e qual há muito se repetia.
Pensou, então, que melhor seria atribuir-se douto.
Doutor, assim era,
Posto que tudo observava a vida
E com o rigor da ciência exata a media.
Perguntou a si mesmo novamente,
- Como a ti mesmo te chamas?
Posto que já mestre e doutor,
O que mais a ti mesmo chamarias?
Pensou novamente,
Novo erro cometia.
A si mesmo se chamou
Mestre-doutor em perfeita harmonia.
Como esse nome já não o bastasse,
Pensou e repensou
Como a mim mesmo me chamarei?
Quando então vil pecado cometia
Posto que se excluíra do mundo em que vivia.
Dado momento, então, bate à sua porta o leiteiro,
Como ele não atendia,
De fora lhe gritou o gajo
Que o leite lhe trazia.
- “Não atendes, ó devorador do sumo da vaca?”
Estou a tua porta batendo.”
Quieto permaneceu o Mestre-doutor até que então de fora o leiteiro gritou:
- “Pois que vás a masmorra, seu bebedor consumas e inadimplente!
Que te julguem os princeses
E te matem os regentes,
De ti apiede o povo,
E a ti te envie à masmorra para que te lembres:
Leite bom bebi e sorvi, mas da cara do leiteiro não me lembro;
já que a ele nunca me dirigi,
mesmo sorvendo seu diário alimento.”
De dentro aquietou-se o designo poeta,
Assombrado e temeroso viu que não era para outros senão indulgente.
Aquietou-se mais uma vez
E a si mesmo perguntou:
- Então o que sou eu,
Mestre doutor inadimplente?
Antes que a si mesmo se respondesse,
Eis que bate a sua porta o padeiro.
Bateu e bateu, mas o falso e dissimulado poeta nada respondeu;
Gritou e esbravejou o padeiro:
- “Pois que vás a forca!
Visto que de mim não há nenhuma inocência;
Que te julguem as mulheres e não te permitam clemência,
Nem te saciem os pães que te deixo de benevolência,
Pois a mim nada deste
E bolor é a tua sapiência.”
Passados esses últimos instantes
Abriu a porta o dito honorário-mestre-doutor,
Rogando aos céus pelo não julgamento
Tal como lhe julgam os credores.
E em brado alto e audível ao seu deus falou:
- Não me julgues como julgam
Aqueles podres miseráveis,
Não têm olhos nem lábios
Que cultivem a boa fama
Pois me têm por louco,
Usurpador e mal pagador,
Só porque lhes devo alguns níqueis
Não lhes vejo os rostos
Mais a eles aborreço.”
Caindo chuva forte e contumaz,
À terra arrebentou:
Lembrou Deus ao poeta:
- “Não há alimento sem dor;
Pois que saldes o que deves
E a mim não te dirijas
Antes que se extingam
Todas as tuas rinhas.”
O poeta então,
Só e a meditar
A si mesmo chamou:
Miserável-do-lado-de-cá,
Pois que da sua porta
Foram deixados leite e pão
Sem que ele tivesse
Aos fornecedores dado a tua mão.
Foram-lhe rogados malogros
Por tais cidadãos,
E aos princeses e reis
A cabeça lhe pedirão,
Eis que ele lhes devia muito mais que um quinhão.
Antes que o fato ao sultão chegasse
Ao vizir recorre o Miserável-do-lado-cá,
E diante dele então
A si mesmo reconheceu:
- Eis aqui o seu escravo
Nem mestre, nem doutor
Somente um poeta
Que se tranca por amor
À arte de escrever
Exige isolamento e dor.
- Não mates o teu servo,
Mesmo que a ti compareçam
Aqueles a quem ele deve
Muito mais que um favor,
Deve o teu servo alimento
Compaixão e pudor,
Pois só hoje sei
Da vida não sou mestre nem doutor,
Concedas a vida ao servo
Que ajunta à poesia arte, tristeza e amor.
Indagou-lhe então do Vizir,
Antes que o fizesse o sultão:
- Como a ti mesmo te chamas?
E de pronto respondeu,
- Chamo-me excreto e podridão!
Mas se a vida me concederes
Poeta, serei, então.
E atendido seu pedido,
Concedido é o perdão.
Estes versos ora que lês
Meus são de coração,
Pois já não me julgo mestre.
Observar, somente,
Esta é a minha missão.
Assim aconteceu há muito,
(Esta é minha elucubração)
A um poeta, um leiteiro,
E um fornecedor de pão.
Brasília março de 2006
- Como a ti mesmo te chamas?
Indagou um pseudo poeta a si mesmo.
Como não conseguia se decifrar
Enganou-se ao pensar,
E olhando a sua volta
Intitulou-se mestre,
Julgando que da vida tinha maestria.
Os teus muitos anos vividos o distinguiram ímpar.
Gostou do título e assim pensou ser mestre.
A vida à sua volta passava e repassava
Tal e qual há muito se repetia.
Pensou, então, que melhor seria atribuir-se douto.
Doutor, assim era,
Posto que tudo observava a vida
E com o rigor da ciência exata a media.
Perguntou a si mesmo novamente,
- Como a ti mesmo te chamas?
Posto que já mestre e doutor,
O que mais a ti mesmo chamarias?
Pensou novamente,
Novo erro cometia.
A si mesmo se chamou
Mestre-doutor em perfeita harmonia.
Como esse nome já não o bastasse,
Pensou e repensou
Como a mim mesmo me chamarei?
Quando então vil pecado cometia
Posto que se excluíra do mundo em que vivia.
Dado momento, então, bate à sua porta o leiteiro,
Como ele não atendia,
De fora lhe gritou o gajo
Que o leite lhe trazia.
- “Não atendes, ó devorador do sumo da vaca?”
Estou a tua porta batendo.”
Quieto permaneceu o Mestre-doutor até que então de fora o leiteiro gritou:
- “Pois que vás a masmorra, seu bebedor consumas e inadimplente!
Que te julguem os princeses
E te matem os regentes,
De ti apiede o povo,
E a ti te envie à masmorra para que te lembres:
Leite bom bebi e sorvi, mas da cara do leiteiro não me lembro;
já que a ele nunca me dirigi,
mesmo sorvendo seu diário alimento.”
De dentro aquietou-se o designo poeta,
Assombrado e temeroso viu que não era para outros senão indulgente.
Aquietou-se mais uma vez
E a si mesmo perguntou:
- Então o que sou eu,
Mestre doutor inadimplente?
Antes que a si mesmo se respondesse,
Eis que bate a sua porta o padeiro.
Bateu e bateu, mas o falso e dissimulado poeta nada respondeu;
Gritou e esbravejou o padeiro:
- “Pois que vás a forca!
Visto que de mim não há nenhuma inocência;
Que te julguem as mulheres e não te permitam clemência,
Nem te saciem os pães que te deixo de benevolência,
Pois a mim nada deste
E bolor é a tua sapiência.”
Passados esses últimos instantes
Abriu a porta o dito honorário-mestre-doutor,
Rogando aos céus pelo não julgamento
Tal como lhe julgam os credores.
E em brado alto e audível ao seu deus falou:
- Não me julgues como julgam
Aqueles podres miseráveis,
Não têm olhos nem lábios
Que cultivem a boa fama
Pois me têm por louco,
Usurpador e mal pagador,
Só porque lhes devo alguns níqueis
Não lhes vejo os rostos
Mais a eles aborreço.”
Caindo chuva forte e contumaz,
À terra arrebentou:
Lembrou Deus ao poeta:
- “Não há alimento sem dor;
Pois que saldes o que deves
E a mim não te dirijas
Antes que se extingam
Todas as tuas rinhas.”
O poeta então,
Só e a meditar
A si mesmo chamou:
Miserável-do-lado-de-cá,
Pois que da sua porta
Foram deixados leite e pão
Sem que ele tivesse
Aos fornecedores dado a tua mão.
Foram-lhe rogados malogros
Por tais cidadãos,
E aos princeses e reis
A cabeça lhe pedirão,
Eis que ele lhes devia muito mais que um quinhão.
Antes que o fato ao sultão chegasse
Ao vizir recorre o Miserável-do-lado-cá,
E diante dele então
A si mesmo reconheceu:
- Eis aqui o seu escravo
Nem mestre, nem doutor
Somente um poeta
Que se tranca por amor
À arte de escrever
Exige isolamento e dor.
- Não mates o teu servo,
Mesmo que a ti compareçam
Aqueles a quem ele deve
Muito mais que um favor,
Deve o teu servo alimento
Compaixão e pudor,
Pois só hoje sei
Da vida não sou mestre nem doutor,
Concedas a vida ao servo
Que ajunta à poesia arte, tristeza e amor.
Indagou-lhe então do Vizir,
Antes que o fizesse o sultão:
- Como a ti mesmo te chamas?
E de pronto respondeu,
- Chamo-me excreto e podridão!
Mas se a vida me concederes
Poeta, serei, então.
E atendido seu pedido,
Concedido é o perdão.
Estes versos ora que lês
Meus são de coração,
Pois já não me julgo mestre.
Observar, somente,
Esta é a minha missão.
Assim aconteceu há muito,
(Esta é minha elucubração)
A um poeta, um leiteiro,
E um fornecedor de pão.
Brasília março de 2006