Anamnese

Último: naturalmente, podia ser, podia sentir, ouvir as arestas curvas do nada. Saber que havia uma película a separar-me de uma certa história de mim. Podemos esquecer, podemos esquecer o que fomos ao propor à memória: que fique apenas uma linha, o perfil de uma imagem, uma sombra quase dissolvida noutra sombra.

Princípio: entre as leis, um enunciado que desliza pelas margens da memória. Um exemplo – ando a ler-me em palavras e imagens, receio que a vida me escape? As redes sociais trazem a cada um aquilo que quase morreu. Já não suportamos o esquecimento, o que se pode ter perdido e foi intenso, o desejo, a melancolia, o arrependimento. A lucidez. A alegria. Outra forma de não suportar a morte. O espaço e o tempo perdem o sentido de distância. Tornam-se posse. Omnipresença do eu, o peso de cada um existir com o peso de si. A ilusão. A virtualidade da ilusão que nos torna imbecis - a hipótese de uma personagem.

O esquecimento em si e a ausência de si devem-se tornar uma urgência. Como se fosse fácil definir o "si"! Como se o "eu" fosse uma certeza!

Tenho nos dedos uma fotografia de Berlim, uma noite, um parque urbano, a aparência de que chovia. Não me lembro de mim e ali sou eu, mesmo quando deixar de ser sou eu, fixado numa foto com um olhar superficial de pose, mas eterno.

Lei: a vida devia deslizar para dentro de si com a subtileza de uma folha leve, uma folha que voa, uma folha suspensa à altura do ar. Ali, em Berlim – talvez fosse Berlim -, quase no fim do Verão, uma livraria 24 horas sem encerrar as portas, abria os livros na belíssima língua alemã e tentava entender apenas a música fonética como se fosse verdadeira música. Mas havia muito mais naquele ano e esqueci e esquecendo esqueci o que vivi, embora possa ter ficado algures em mim uma personagem - e eu não sei…