[O Instante do Fogo: Narrativas do Menino Calêla]
"...E uma vela acesa, uma que fosse, ali ao pé, a fim de que o fogo alumiar a primeira indicação para a alma dele – que se diz que o fogo somente é que vige das duas bandas da morte: da de lá, e da de cá..." — João Guimarães Rosa — "Grande Sertão: Veredas" [Nova Fronteira – 19ª ed. - p.598]
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Numa daquelas tardes de longas conversas, o Calêla narrou-me a história de uma morte que ele assistiu – como puderam permitir, a um menino de apenas 5 anos de idade, assistir a um espetáculo desses — coisas da mãe dele! Segundo o Calêla, sua mãe, espírita, acompanhada dos seus guias nas curas, partos, preces que fazia, era uma pessoa destemida, realista – era da opinião de que <<gente devia enfrentar logo os fatos, e de uma vez — para não deixar dúvidas! >> Pois não é que, quando ele tinha apenas 4 anos, sua mãe levou-o ao cemitério, apontou um túmulo, e disse: “seu papai está ali...” — Nunca o Calêla foi iludido com suavizações <<do fato>>, ou fantasias inocentes acerca da morte do seu pai — soube logo, nas primeiras luzes do seu entendimento!
Quando li o trecho acima do "Grande Sertão", fiquei bastante impressionado — imediatamente, veio-me à lembrança a história do Calêla... ele falou da morte de uma vizinha, muito conhecida de sua mãe...
Numa certa tarde de agosto, lá estava ela em seu leito de morte. Naquele tempo de raros aconteceres, juntou muita gente em frente à casa dela, cujas amplas janelas davam para a grande Avenida Minas Gerais — a avenida do Calêla. A curiosidade era ainda mais aguçada pelos gritos da "desenganada", em seus instantes finais de vida.
E, digam o que quiserem, sempre achei tétrico o sentido, quase místico dado a esta palavra — desenganado — a morte batendo, inapelavelmente, à porta... e hoje sei: aqueles acordes iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven — pam, pam, pam, pam... experimento bater com o nó do dedo na madeira da mesa... e dá certo!
Perguntei ao Calêla o que ele achava desta palavra; disse-me que <<sinto o sentido, mas ainda não sou capaz de explicar>> – só mesmo um poeta como este menino — “sentir o sentido”... Disse-me <<ouvi dos vaqueiros na fazenda, dos pedintes que passavam pela porta do meu chalé amarelo, dos leprosos cavaleiros, da velha lavadeira de roupas, do Seu João Vermelho, com os seus 105 anos de idade... de tanta gente eu ouvi essa palavra... tanta!>>. Como esse Calêla é historioso, memorioso — sorrio para mim mesmo.
Ah, sou assim... desguio... Voltando à narrativa do Calêla:
<< ...vazei feito água por entre a selva de pernas das pessoas paradas no terreiro em frente à casa, subi num pequeno degrau na parede, logo abaixo da janela, e consegui ficar com queixo ali, sobre a verga. E de olhos bem abertos, eu espiava a cena do quarto. E o que era, o que acontecia era... aquela senhora se recusava a morrer; as pessoas punham uma vela acesa em cada uma de suas mãos, e então, ela cerrava os olhos, ficava quieta, prostrada, enquanto a reza subia o volume... a zoada surda e apavorante da reza enchia o quarto. E a mulher quieta, quieta... respirando leve... Mas quando alguém dizia – “agora, com a graça de Deus, ela vai...”, aí, para espanto de quem a assistia, ela juntava forças sabe-se lá de onde, soerguia-se, forte, sentava na cama, e segurando as velas acesas nas mãos, berrava: “eu não quero morreeeeer!”. Neste instante, eu pulava da janela, e corria para a avenida – se aquilo era coisa do “trem ruim”, será que no aberto da avenida ele havia de me pegar? Eu, hein?! E aí, eu zunia para a minha mãe!>>
E então, Calêla, e então? <<Ara, com o sentido certo de ter uma vela acesa na mão, com aquela zoada toda de rezação, e com alguém dizendo: “agora ela vai...” — quem é que não refugava com essa morte assim, paramentosa, quase que chamada á força, a poder de reza!?... Mas, foi indo, foi indo, depois umas tantas erguidas na cama, de tantos berros de “não quero morreeerr...”, finalmente, ela se foi, à tardinha; ela se foi – finou-se. O enterro – só no outro dia, pois ela já tinha ido mesmo... nem havia de ter pressa, o sofrimento de ser abreviado já tinha sido; o que foi, foi – matéria extinta, era o que ela era agora.>> “Matéria extinta” – que palavreado!
Hoje penso, hoje sei e sinto: o fogo, a vigência nas duas bandas como disse o Guimarães... O fogo de agora, como o instante que acabou de escapar de mim, nunca é igual ao fogo de antes. E há de sempre ser assim; ao meu olhar atento, o fogo, como o instante, reparte o tempo, num antes e num depois. Ao que pude experimentar, ao que pude sentir, e sem explicar o sentido, há um instante em que o tempo se desmorona, perde a nossa cabeça aquele sentido de fluir que é o de um rio — é o instante do gozo pleno, do êxtase nos braços da mulher amada. Este é sim, um fogo que vige em duas bandas — antes do gozo... e depois do gozo. Antes da morte, e depois da morte do gozo — e no meio, sem duração, o fogo do instante do gozo — Ah, mas não tem sentido isso que acabo de escrever... Ou será que, como o Calêla, eu “sinto o sentido”, mas não sei explicar? Ara... gozo, associado com morte... <<... o que é isso, Carlão! Cê num é nem abelha, nem tanajura!>>, diria o Calêla...
[Penas do Desterro, 28 de setembro a 10 outubro de 2010]