“Tenho medo de escrever. É tão perigoso”. Clarice Lispector
Eu não temo escrever, Clarice. Teria você esquecido de dizer que ler é mais perigoso ainda? Ah, Clarice de todos nós, ler é amedrontador. Ler pode reviver momentos e nos levar perigosamente ao passado. Por isto rasguei as páginas. Acontece, Clarice, que descobri que as cartas estão escritas em mim. Descobri quão nítidas estão, e impiedosas. Descobri que abri portas e janelas. Vi também quanto de mim escondi e fingi não reconhecer aquelas portas que pensei seguras. E agora eu não tenho coragem de entrar e nem de sair da soleira. As outras portas que mantive abertas se fecharam e não mais me aceitam. Que há lá por dentro? O que se fechou na casa e que não mais me acena? E também por que eu não crio a necessária intrepidez para avançar e ver o que guardei? Eu sei. Lá dentro há íntimas verdades que me esperam. Serei cobrada de minha indiferença arquitetada, da altivez do meu rosto a me enfrentar, a desafiar e a me ordenar que eu grite. Entretanto, não gritarei nem se me arrancarem os dedos. Não direi palavra que se tornem navalhas em minha face. Ah, Clarice, tão perigoso é ler. E também reconheço agora que eu gostaria mesmo era de ser analfabeta de meus sonhos. Eu até esqueci de sonhar. Dormir é afogar-se no escuro onde não há portas para o passado e nem janelas para o futuro. Eu não temo escrever, pois escrevendo formo um rio que espero um dia esgotar-se em mim. Coloco gaivotas, garças, marinheiros e comandantes nesses mares que se vão formando. E espero a seca. E não me leio para esquecer na embriaguez dos sentidos quem é a que se vai nas palavras. Mas, esse tormento não cessa, a fonte não para de minar. Os cenários voltam. As aves sobrevoam minha cabeça e me contam histórias de marinheiros e de comandantes desaparecidos. Ah, não quero ler.