[As Ternas Instâncias de Mim]

[No suave entardecer de Brejo Alegre, três instâncias de mim reúnem-se em frente ao majestoso Portão do Colégio dos Padres... pois afinal, —" A cada homem é dada, com o sonho, uma pequena eternidade pessoal que lhe permite ver o seu passado próximo e o seu futuro próximo". — Jorge Luis Borges – O Pesadelo]

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Com as pernas doendo de percorrer a infinita ladeira da Rua da Estação, cheguei à grande Avenida Minas Gerais. Os meus dois amigos que também retornavam das suas lidas nas ruas, já me esperavam ali, em frente ao Portão do Colégio dos Padres. O dia não foi bom para mim, vendas fracas; trago dependurados neste meu bastão de guatambu as sacolas de laranjas que não consegui vender. Nestes meus dezesseis anos de vida, firmou-se em mim um tipo dado ao pessimismo, e que, por isto mesmo, mais sofre do que curte a vida. Tenho o sorriso duro, não sou de brincadeiras. Mas, admito, nem tudo é cinza aos meus olhos: eu acho muito divertida esta coincidência de que eu e os meus dois amigos tenhamos os mesmo nomes, e sejamos parecidos, como se fôssemos irmãos!

Aquele menino que está debruçado num carrinho de picolés, e usa um surrado chapéu de palha, tem 11 anos de idade, chama-se Carlos – é o Carlinhos — e como eu, trabalha, nas ruas de Brejo Alegre: ora vende picolés neste carrinho azul parado junto ao meio-fio, ora está a engraxar sapatos ao longo da Rua da Estação. Nesta tarde, ele está com o carrinho de picolés que pertence ao minúsculo bar e sorveteria de sua mãe. O dia foi bom para ele, vendeu todos os picolés, mas teve umas brigas com uns tipos à-toa das cabeceiras da Vila Amorim. O Carlinhos é bom de briga, bom de estilingue — trocou socos com eles, mas não perdeu o dinheiro das vendas! — "Era só que me faltava — perder o meu dinheiro suado para aqueles vilênios!"

O outro é o menino Calêla — diminutivo carinhoso de "Carlos". Tem apenas oito anos, mas é, como o chamamos, um menino-velho, pela maturidade de sentimentos que demonstra. O Calêla sonha em ser um escritor, e com o pouco que sabe, até já escreve versos! É muito esperto e, trabalhador, anda pelas ruas com a sua carrocinha de madeira —, ganha o seu dinheirinho com a venda de esterco e areia. O Calêla ajunta o esterco dos cavalos que o vento [estamos no Planalto Central do Brasil] acumula ao longo das sarjetas. A areia, ele a obtém das pedras-de-areia que encontra na trilha das enxurradas que escoam na grande Avenida. No terreiro em frente ao chalé amarelo em que ele mora, há uma pedra de basalto que o Calêla diz ser a sua "pedra de olhar o mundo" — é um poeta mesmo! —, que, nesta altura da [sua] vida, não passa da grande Avenida. Com certeza, há muita gente que gostaria de ter uma pedra assim, um lugar de contemplar o mundo! Pois é ali, sentadinho na sua "pedra de olhar o mundo", que o Calêla bate uma pedra-de-areia na outra até que ambas se desfaçam numa finíssima areia de várias cores. O esterco, ele vende nas casas que têm jardim ou horta; e a areia, as mulheres a compram para misturar no sabão e dar brilho nos alumínios. Hoje, o Calêla está muito contente —, conseguiu vender todo o saco de esterco que tinha juntado, e também toda a areia da velha lata de bolachas!

Preciso dizer que os três somos descendentes de italianos, temos olhos castanhos, cabelos claros, as pessoas dizem que "somos bonitos, e que a mistura de raças deu certo!" — "Ara, cachorro, boi, bicho é que tem raça, nós somos mesmo é só gente humana!" — retruca o Carlinhos, o bom de briga. Ah, nem gastava explicar... sendo eu o mais velho dos três, para os meus amigos, sou o "Carlão".

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[É desnecessário, mas eu esclareço: há uma quarta instância que sonha e vive as outras três — essa, sou eu, ara! E ao longo de umas 120 páginas, narraremos a trama das nossas vidas — em especial, o "Carlão" tem uma história picante —, uma treta que ele teve com a gostosa mulher do dono do bar da Subestação Rodoviária — a tal da Lurdes...]

[Penas do Desterro, 03 de outubro de 2010]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 03/10/2010
Reeditado em 10/04/2012
Código do texto: T2535241
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