[Um Certo Cheiro Frio...]
Lá está, ostensivamente firme, fechada ao modo definitivo da portinhola de um túmulo. É vermelha, cor de sangue, mas, apesar de passar por ela centenas vezes nas minhas noctivagações pelas madrugadas, só hoje, sob essa chuva insistente, dei pelo fato de que, ao contrário das suas congêneres, é vermelha, e não preta ou cinza-chumbo, a porta-de-ferro da prosaica oficina!
Passo devagar diante dessa porta, e do meu carro, posso sentir o cheiro frio do óleo que se exala das máquinas paradas, inertes, sem mãos que as operem. Cessa a faina, cessa o tripalium; silêncio... cessa o labor - esse monstro sem cabeça - que se ceva da força do sangue dos homens.
Cá fora, chove. Eu carrego comigo tudo que vivi, vivo - não há outro jeito de estar vivo - ou há? Desconheço, e se conhecesse, não acreditava. A água que escorre lentamente pela ondulação da porta de ferro vermelha é, obviamente, transmutada em sangue pelos olhos da minha imaginação. Não sei o que é piedade - logo, em nada me concerne o destino irrecorrível das mãos que voltarão na segunda-feira - somos todos Sísifos - uns sabem e sentem isto, e outros, não - sofrem como os bois, como os cães, e quando morrem, alguém diz: "descansou!"
Lá dentro, adivinho a cena - nem me preciso do transporte dos sentidos para experimentar a atmosfera que conheço tão bem de outros fracassos que vi - a vida parada, o silêncio do óleo frio, chaves comutadoras geladas, apenas uma lâmpada suja, acesa 24hs - eu e esta oficina banal, juntos, na mesma fenda do tempo, nesta bolha estática do instante que vai estourar na segunda-feira.
Eu, desolado, sem nenhum amor, e a dureza vermelha desta porta onde a chuva bate e escorre lentamente para calçada... Eu, seco, árido, no conforto do carro, e essa tristeza molhada... Eu, e o cheiro frio da máquina parada da minha vida... Eu só, eu e os meus passos agora sem onde...
[Penas do Desterro, 03 de outubro de 2010]