Do alto, num passeio panorâmico, vi barracos desolados, construídos de lata velha, tábuas, zinco e outros materiais irreconhecíveis. Parecem apontar construções grotescas erguidas pela incontrolável miséria. Desafiam as leis da gravitação, ali, impávidos, pacatos, vencendo o tempo num absurdo equilíbrio, realizando malabarismo.

Alguns não são de lata ou zinco, ainda assim são abrigos hipotéticos, cujos tetos dá pra se ver a lua e as estrelas, mas também em noites invernosas, sob farrapos sentem nos ossos o frio das chuvas e dos ventos cortantes.

Nas encostas entre o azul do céu e a cidade, há gente desuniforme. Do camelô a lavadeira. Do biscateiro a secretária. Do malandro ao policial. Gente que ganha o salário mínimo. Gente que nem o mínimo tem. Mulheres abandonadas com filhos pra criar. Mulheres fortes a trabalhar.

Não é culpa do morro. Mas lá se abrigam também em suas vielas tortuosas, malandros, descuidistas, assaltantes, traficantes. Muitos delinqüentes de baixo gabarito que não possuem contas polpudas em bancos na Suíça.

Quem não conhece o morro e essa gente moradora das favelas, não pode dizer que conhece a cidade. Porque ali se abriga o coração e a alma do avesso do nosso hino nacional. O ritmo do samba. Em noites de veraneio se ouve o som dos surdos, dos atabaques, das cuícas, ecoando pelo espaço ate chegar, lá embaixo, no ouvido daquela outra gente, que sonha tranqüilamente.

Existe um tempo em que a gente do morro e a da cidade esquecem suas diferenças. Não importa se há lua prateada no céu ou chuva molhando o asfalto da avenida. Misturam-se raças, credos, desejos, engravatados e descamisados.

O som criado no morro contagia e a poeira levanta nos pés da passista no pulsar da bateria. O desfile começa. Abram alas: a escola vai passar!

Os olhos de toda gente se concentram para apreciar os adereços, os cocares das baianas, as cadeiras da mulata a gingar.

Quem entende?! Todos os dias o morro exibe as suas mazelas, mas num único dia do ano, expõe a sua grandiosidade!



Setembro de 2006