FOLHAS SECAS DO AMOR.
Eu me criei para ser um amante à moda antiga, "daqueles que ainda mandam flores", como na canção de Roberto. Passei um bom tempo imaginando um amor infinito. Eu, sendo um príncipe encantado, certamente estaria sendo buscado pela milha cara metade... O romantismo sempre norteou a vida de muitas pessoas - ilusão que o tempo mais tarde sempre se encarrega de modificar por absoluta falta de sentido prático. Na existência humana há coisas que, a despeito de parecerem românticas, apenas acontecem no sentido prático. Platão talvez não tenha exagerado quando teorizou magistralmente o mundo das idéias. Na verdade a gente pode ser feliz pra sempre se nos ativermos no viés das idéias. Estas são efetivamente nossas. Sobre elas a gente navega infinitamente e até constrói castelos. Com o amor factual, dia a dia, não podemos ter a mesma determinação, pois entra em cena outra pessoa para dividir sentimentos diversos. Conviver com outro na construção do afeto, subverte qualquer lógica que se tenha construído no tempo, principalmente em função das cores que o romantismo utiliza para falar de amor. Aquele mesmo amor tal como aprendemos na infância e adolescência, que nos remete, inadvertidamente, aos sonhos de um amor infinito, "pra sempre".
As histórias calcadas em Romeu e Julieta embalam nossos sonhos, mas estes sobrevoam outras instâncias da vida. Não se pode viver sem o sonho de um futuro melhor. Compõem, certamente, a nossa manutenção emocional traduzida pelas ilusões de amor eterno. Infelicidade talvez seja a falta do sonho; amargura, a falta dessa possibilidade. O ser humano foi feito para conviver.
O sentido de finitude, talvez tenha construído o mito do amor eterno como que para diminuir a angustia que envelhecer e morrer provocam. Alceu Amoroso Lima tinha razão: entendia que a única vez em que a vida ganha da morte, é quando nós, humanos, sabemos que um dia morreremos, mas permanecemos amando a vida. Esse trajeto existencial tão variável não garante velhice para todos: morre-se criança, jovem, adulto e velho. Quem não morre moço, certamente quando velho não escapará. Quanto mais se envelhece, mas se percebe a nitidez do tempo "caçando" o que nos concedeu em abundância quando jovens, inclusive a ilusão. Os amores, os casais que se prometeram nessa grande aventura humana, dificilmente têm resistido à ditadura do tempo e suas circunstâncias: o sexo fica meio minguado; o companheirismo fica comprometido; instala-se uma gradativa falta de paciência que se soma aos agravamentos físicos que o tempo impõe; os filhos começam a constituir suas famílias... É a solidão batendo a porta cruelmente. Geralmente, um dos parceiros busca alternativas fora do casamento - aquele casamento que foi motivador de juras eternas de amor. Há exceções, mas essa regra tem norteado a vida alhures. A mulher é quem mais sofre nesse processo. Nossa cultura exige demais dela incutindo-lhe romantismo exagerado, esquecendo de proporcionar maior capacidade emocional para dar a volta por cima quando o casamento acaba. Muito se avançou nisto, mas a regra ainda é esta, inclusive porque o corpo dela, pela natureza estrutural, modifica-se. Perde sua especificação estética com facilidade levando-a a poucas chances de competir com outras mais jovens. Contra elas ainda existe a ditadura do corpo sarado e da felicidade no casamento atrelada a juventude. O outro lado dessa moeda revela o homem em sua natureza instintiva buscando garantir na sua masculinidade. Parte para investir em relações novas, apaixona-se com facilidade, expõe uma virilidade questionável. A família fica meio chamuscada em função dessas transformações, donde se repete o ritual da ilusão de amores um dia sussurrados nos ouvidos uns dos outros. Um belo dia a gente vê a nitidez da realidade. Nua e crua, ela não nos pede conselho nem licença. Instala-se e fim. Algumas vezes vale a pena refletir diante do espelho: destino existe? As pessoas são para o que nascem ou nascem para o que são? Onde permanecem a ilusão e o sonho sem o feijão de Orígenes Lessa? Por que não nos preparamos para compreensão da vida como ela é?
A prova final do vestibular da vida está, provavelmente, no ato de envelhecer sem envilecer. Essa fase subtrai das pessoas o que outrora nos dera com sobras. A vista fica curta, a audição diminui, os passos ficam trôpegos, a memória começa a virar lembrança, os filhos e netos não nos escutam mais. Ou escutam sem dar a devida importância. Começamos, na velhice, a nos encantar: NINGUÉM NOS VÊ! Não nos chamam mais pra nada, não nos acolhem como antes, não nos cuidam como um dia cuidaram. Essa prova final da vida reprova a muitos que não se instrumentalizaram no amor próprio. A gente é sempre compelida a amar os outros, a se apaixonar pelos outros, a gostar dos outros. Isto é bom, mas é pouco. A sociedade peca quando não nos prepara para nós, haja vista que poucos se preparam para a posentadoria. Como o tempo não se possui a si mesmo, o homem sofre porque lhe deu dimensão falsa a vida inteira. A gente se prepara para o futuro, estuda para ter um porvir melhor, para ter uma velhice melhor e... A vida dá um freio de arrumação em tudo. O tempo passou e dentro de nós, FILOSOFICAMTNE, nada passou. Não fosse o estrago que ele faz em nosso corpo; não fossem as fotografias antigas e os espelhos; não fossem os contemporâneos já velhos, cabelos brancos, rugas na face, talvez a gente pudesse enganar um pouco mais o tempo.
Recorremos novamente ao amor. Às ilusões que carregamos a tiracolo como que querendo nos justificar de nós mesmos, pois nos dispusemos ao tempo entregando-lhe a vida. Naturalmente as pessoas vão rebuscando o passado, alinhavando questões que o vestibular da vida não contemplou, mas que ficaram no reino da idéias, das ilusões.
E aquele grande amor da nossa juventude por onde andará? Os sonhos, o afeto, o amor, parece que viajam no mesmo vagão do trem que conduz os judiados pela rigorosidade do tempo. A lição da felicidade eterna está descartada como um conto do vigário. Vigarista, esse tempo! Melhor defender que felicidade não existe, mas sim momentos felizes. No singular e no plural é o que somos em nossa contraditória angústia. Só não somos na solidão. Esta talvez seja a companheira mais certa a nos cortejar no trajeto final. Nossa primavera vai cedendo, lentamente, lugar para nosso outono. Lá, quem irá catar nossas folhas secas?