Eu daria a todos o meu silêncio
Recortado da penumbra do pensamento
Enfeitado de vazios tão belos e sublimes
Calaria fundo cada palavra insidiosamente
E as tornaria folhas caídas pelo chão pisado
Ou flores nas extremidades dos caminhos
E cada pensamento seria chuva miúda
Que calmamente inunda a tarde dormida
Apagaria da história todos os possíveis fatos
Os feitos, as fotos, tudo fátuo, todos os relatos
Apagaria o meu nome e cada lembrança dele
E os meus restos, os meus rastros em alabastros
Apagaria meus desejos tantos e seus encantos
E com eles poria novas cores nas paisagens
Apagaria meu endereço, meus telefones
Jogaria fora todas as chaves, os entraves
E as culpas mais simples e as mais graves
E as tornaria um perfume suave da noite fria
Apagaria todos os rumores e todos os temores
Mataria as flores e os amores e seus sabores
E tornaria tudo ar que se respira sem dores
Apagaria os sentimentos e seus ressentimentos
O meu riso e todos os sorrisos na luz difusa
E tornaria em escuridão o impossível silêncio
Apagaria meus cantares de novos ares e eras
E os meus olhares para todos os horizontes
Para olhar doravante só para o ínfimo chão
E depois o fundo do chão no chão que preciso
Brotaria erva daninha de minhas horas precisas
Cobriria de grama fresca os momentos indecisos
E deixaria orvalhar as emoções numa manhã serena
Eu apagaria todos os sonhos no poço fundo da ilusão
As minhas ideias vagas e os pensamentos sinceros
O inútil desespero que brota no cume da esperança
Eu apagaria as palavras engasgadas nos poemas
E a beleza tão mais certa de todos os meus dilemas
Tornaria cada letra uma estrela encantada num céu de vidro
Cada lágrima um estilhaço do espelho em que me não me vejo
E, se pudesse, apagaria cada lembrança de cada instante vindo
Uma a uma, cada uma, alguma lembrança de vida nenhuma
E deixaria brotar feito planta num vaso de esquecimentos
E tornaria tudo um facho de luz nesse mundo tão estranho
E isso tudo me tornaria mais estranho que o estranho mundo
Se tudo isso me desse ao menos um segundo de descanso...
Marcos Lizardo
Enviado por Marcos Lizardo em 07/09/2010
Reeditado em 02/08/2021
Código do texto: T2483870
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