Retratos falados
PRÓLOGO
O olhar pra ter sentido
é um jogar com a visão
onde o sujeito, por dentro,
descreve toda a armação
É um jogar com o que existe
real por fora, ocorre dentro,
mas que muda com a releitura
e continua igual ao mesmo tempo
Sendo como é: um jogar,
muitas vezes o real varia,
ou varia o que ocorre dentro,
mundo ideal que se assimila.
E a realidade assim dita
toma de empréstimo adereços
que a vestem para entrar
na rua de outro endereço
e como por caminhos novos
a perder-se, a vida real, fora,
passa a conduzir-se maleável
a permitir-se nova forma
Que é o real mais exato
que só ocorre quando impressiona;
quando a língua lhe dá molde
a máquina interna funciona
RETRATO A
Como descreve-la assim de lapso?
ou como dar-lhe forma fidedigna?
Ter que rebusca-la é difícil
quanto mais descrevo, menos aproxima
dar-lhe-ei entretanto
o desenho de seu jeito e essência.
É alta como uma palmeira alta
a impor longe sua presença
mas que tem nos olhos castanhos
o imponencia de um coqueiro,
mais vivo que o verde palmeirense,
pois são doces, frutos seus, caseiros
E tão qual seu comprimento, altura,
são seus cabelos a descer-lhe
pelas espáduas como a alisa-la
qual duas mãos a percorrer.
É também branca, caucasiana,
cor de luz como a aurora;
É branco também seu sorriso
aberto de fora a fora...
Vendo-a parece frágil, franzina,
nos gestos com que se cobre,
mas não se engane com a imagem
de menina que comove...
Ela é antes fera que presa,
tal como leoa uma dormindo
mas que quando incendiada
provoca espanto e alarido.
Espento que nos espanta,
com louvor, deixe-se claro,
que só ela assim provoca
tamanha forma, feitio raro.
RETRATO B
É difícil lembrar de tudo.
Foi há muito, como sabe,
é como descrever em névoas
engana-se com facilidade.
O que mais me lembro é das mãos
que eram grandes, musculosas
como as mãos de um urso,
ou ursa, pois eram zelosas
Também me lembro da risada
que era forte como um rugido;
ele tinha a voz grave. é claro
devido ao tempo ja vivido.
e tinha bigodes também, brancos.
não sei se eram fartos ou ralos,
sei que os tinha e somente isso
e que morrera de algum infarto.
RETRATO C
Como não lembrar-se,ou
como esquecer facilmente
de quem deixou uma cicatriz
que inda está latente?
Vejo-o como se fosse hoje
e esta tal é a sua feitura:
tinha o rosto doentio
como é assim a angústia
e era pálido, albino como se diz,
olhando-o parecia de gelo
com os olhos vidrados em nós
olhos da cor do medo...
que, paralelos à sua tez,
ardiam como brasas fumegantes.
E como eram sem vida!
Porém como eram gritantes!
Talvez visto na rua
fosse um ente normal
que a vê-lo sentissemos pena
e que pudéssemos amar,
mas tal qual a onça faminta
cujo charme rodeia a presa
para depois despedaça-la
fica sua imagem retesa
associada ao nome trauma,
que se associa ao nome morte
e ao fenômeno tristeza,
o casamento de mais sorte.
Pois este nos seguirá sempre
não importa o quanto se viva
enquanto durar esse vazio
mais à sua memória se associa.
Retrato D
E sim, ela era estúpida
com cara de sonsa mesmo!
Não sabia fazer nada
e nem queria aprende-lo...
Gostava era de dormir
com aquela boca escancarada,
que mais parecia a de uma porca
que carecia de maçã para fecha-la.
E roncava, Deus, como roncava!
fazia ressoar toda a parede
como o barulho de um motor
oculto sob todo aquele
imenso corpo balhofo e gordo.
E ainda era vaidosa, digo
que tinha seus caprichos.
Que educação teria tido?
Bem, não sei ao certo.
O que sei é que incomodava
e que não dava mais certo
e que com ela eu não ficava.
E só pra não dizer que
eu não a elogiei em nada:
ela tinha a letra bonita
de dondoca mal amada.
RETRATO E
Ele batia na gente...
ainda mais quando bebia.
Às vezes fazia umas coisas feias
que a gente não entendia.
Mas na época era só estranho,
hoje, eu não sei como chamar.
Quando eu lembro dos olhos claros
a daquela voz a me gritar
sobe como que uma angústia
um medo. Mas não um ódio.
De certa maneira eu gostava
quando ele me punha no colo.
Gostava do seu cabelo negro,
achava-o o mais alto do mundo
e ele era um pai amoroso
Ja a bebida é outro assunto
Só quando bebia mudava.
Agora não sei que imagem dar:
a de um pai alcólatra
ou a de um alcólatra pai.
RETRATO F
O meu filho era bom
rapaz direito trabalhador.
Só porque fumava um troço
a polícia veio e matou.
Nao fazia confusão com ninguém,
bebia com os amigos na dele,
Magrinho que só você vendo
mas disposto que só ele...
Mataram pór ruindade mesmo,
eu sei que ele não era errado,
só gostava de sair a noite
e ás vezes voltar embriagado
Ele fazia bicos, servicinhos
pra ajudar na sua casa
E ganhava muito dinheiro
mas sempre tudo gastava.
Agora ele se foi, ta ai a foto.
Ele era um filho muito bom,
mas isso não o trará de volta
só pra dentro do coração
EPÍLOGO
Assim como um mosaico
a juntar-se em várias partes,
os olhos que captam a imagem
escolhem o feitio a dar-lhe.
E assim na peças escolhidas
uma a uma um todo formam.
E o universo fora, real por dentro
o motor da vida impulsiona.
Motor esse a funcionar
mas que não é mecânico,
motor que palpita dentro
a máquina ser humano...