[Na Janela do Décimo Segundo Andar do Inferno...]
Hoje pela manhã, um pássaro cantou junto à janela do décimo segundo andar do inferno onde eu vivo - pássaro mais doido, pensei... vir cantar na janela do inferno. Aí, viajei longe, longe... e caí em reflexões...
Diálogo no subsolo do inferno:
- O senhor é louco? Tem um carro velho como esse... e mora no inferno de um apartamento! Só pode ser louco! Eu num moro espetado de jeito nenhum, por dinheiro nenhum!
E eu, sem jeito, sem graça, humilhado:
- Tá certo, moço, tá certo... também acho isso, mas...
- Pois mude-se, cadê a sua liberdade?!
Aí, ele complicou tudo; aí, eu perdi o rumo de resposta, fiquei embaraçado... não fui metido aqui à força - para minha desdita, vim com os próprios pés, num momento de fraqueza moral... quem é que não tem alguma, vez enquanto? Fiquei em silêncio, esperei o mecânico fazer o carro funcionar. Depois, feito um cachorro magro, sarnento, eu entrei no carro, e busquei luz, saí para o sol, e chorei... chorei de raiva!
Mas eu sei: o centro do mundo sou eu e o meu ponto de vista - os outros, são só os outros! Só eu sei onde passeia o meu olhar, só eu sei os desejos que sufoco, só eu sei as idéias que enterro com silêncios, sem jamais expressá-las a ninguém, ninguém! E eu sei muito bem que as minhas razões não fazem sentido para ninguém!
A pois... o meu ponto de vista... pois eu acho que morar em apartamentos - qualquer deles, do mais luxuoso ao mais simples - torna inferior o ser humano que os habita. A pessoa vale menos, cede pedaços de sua humanidade, sua liberdade a estranhos que, embora morando de parede-meia, por baixo, por cima, e dos lados, me cortariam a goela, e com faca cega, se pudessem! Ah, como detesto as viagens de elevador, os cumprimentos falsos...
O apartamento é onde se dá o mais rematado exercício do ódio contra a espécie humana, é onde até os cães [de apartamento] merecem afagos de vizinhos que, de outra forma, não me olhariam na cara. O ódio é mútuo, todos os internados no "jazigo dos vivos" sabemos disto!
Será que existem psiquiatras para pássaros? Será? Se existir, e se eu pudesse, capturava esse pássarinho maluco que veio cantar aqui, na janela do décimo segundo andar do [meu] inferno... Imaginem o que esse pássaro fez comigo, olhem só, o tamanho da sua crueldade, se não é caso para tratamento:
O seu canto transportou-me... num segundo, eu estava de novo, montado no meu cavalo castanho [aquele que tinha um defeitinho na ponta da orelha direita... ah, não, era na esquerda], cavalgando no espaço de luz da grande invernada, à margem mineira do [meu] Rio Paranaíba... livre, livre, só o vento na minha cara, e as patas do cavalo tocando maciamente no chão, no galope... Eu, e a verdura sem fim da grande vazante!
Ah, passarinho; ah, passarinho! Vamos nos tratar, eu e você? Você, para aprender a ficar longe do inferno, ara, escolha uma árvore para pousar e cantar... tem tantas por aí! Eu, para apagar as lembranças, ou para tentar aprender a responder a pergunta do mecânico: "cadê a sua liberdade?".
[Penas do Desterro, 22 de agosto de 2010]