UM PUNHADO DE TEXTOS
1.
Pegar ônibus em Belém do Pará. Que terrível. Sobretudo à noite, quando as criaturas mais draculescas deixam seus ataúdes e percorrem as ruas à caça de bebida, sexo e dinheiro. Por coincidência, enquanto isso, a polícia dorme o sono dos justos.
Uma parada em frente ao shopping- um templo de Mamon. Dois nosferatus se avizinham. Não querem meu sangue, nem meu cérebro. Um velho motoqueiro perscruta a floresta supersexualizada da rua Padre Eutíquio. Quererá uma ninfeta ou um travesti? As vestais estão em casa, vendo novelas, ou solitariamente descobrindo a libido.
Procuro sempre a orla iluminada, e aquela tênue sensação de refúgio...
IN ABSENTIA LUCIS, TENEBRAE VINCUNT, já dizia meu avô Latinório.
2.
Sonhos que procurei entender e não vivi.
Despertar que não consiste em, apenas, não dormir...
A pérola perdida, escondida atrás da imensa porta translúcida,
Voraz oceano que me engole, palavras doendo na garganta.
Tímidas felicidades, risonhos fantasmas.
No dia seguinte virá meu esclarecimento:
‘ À MÍDIA: a notícia da minha morte foi um exagero, embora eu,
Em concretude, não tenha apenas dormido.’
A cadeira de balanço faz o quê? Balança eternamente...
O ruído parece um choro de criança.
3.
Da isolada rosa vermelha que um tonto escritor disse que jamais murcharia restou o branco esqueleto humanóide em decúbito dorsal que as equipes de antropometria forense não conseguiram identificar se era de homem ou mulher, mas que os primeiros alcunharam de Romeu e, as outras, de Julieta.
Nestes casos, estabelecer a causa mortis é simples: uma análise da apoptosis do DNA demonstrou que, filogeneticamente, a rosa se tornara Rosa Sapiens.
4.
Quando chove de noite, um casal de sapos que habita meu quintal vem, pulando, pelo longo corredor lateral da casa e chega ao jardim, onde ficam os duendes de cerâmica. Tomam banho juntos e discutem não sei que assuntos de grande urgência anfíbia e fabulesca.
Enquanto isso, minha gata, como uma pequena esfinge, observa. Suas orelhas se movem imperceptivelmente.
Grandes gotas caem das flores de acerola, sacodem as palhas de açaí. Os ônibus passam lotados, os olhares raivosos dos passageiros dão medo. Entre misérias, crimes e crises, a alma humana não terá jamais tamanha pureza.
5.
A Inquisição bateu à minha porta e eu abri.
Mandaram-me pular num pé só, dar uma rodadinha, e
Perguntaram sobre algo que escrevi.
-Mas não ofendi o Rei, a Rainha, Aristóteles, o Papa,
Os bons costumes, as autoridades constituídas,
Os magnatas e as grandes corporações. Nem fiz declarações politicamente incorretas sobre A, B ou C.
-Mas ofendeu a Inquisição!
-Quando, então?
-Não interessa. É próprio dela ofender-se com frequencia. Sente-se sábia e coerente. Pudica e potente. Misteriosa e sutil. Não se lastime, escritor. Nada podes fazer. Vamos.
(Fui executado naquela mesma noite. Concluí que, se tinha mesmo ofendido alguém, só podia ter sido a minha profissão)