Não era
Pensava que era o desagasalhar daquela noite fria. Pensava ser do ser, o verme, e do verme a fagulha, o micróbio da mão no ato do afago, a ferida exposta sem resposta à pergunta inquieta e nua. Todavia não era.
O que sentia era branco e era gélido. O que via eram só lápides ao relento bento dos descaminhos. Seta na noite, sobre pontes que apontavam para a partida. E o fazia, se não retida, repartida, como o são, às árvores nos pomares e no patamar dos amores divididos.
O reinar do capitalismo hereditário e inseticida. O desmerecer do mármore. O lamento do suicida. E sempre, a janela. A janela e a cortina.
Olhei quando anunciaram no nevoeiro, a presença do passageiro, um baderneiro, um sem beira e sem centro dentro. Um sem glória, sem cetro, sem reta. Um sem selo, sem sê-lo.
Escutei na voz que vinha, o som e o ruído saídos do espelho. Por um triz não vi o teu rosto no poço refletido em luz e zelo. Foi por muito pouco, foi por um momento. E eu lamento tanto! Foi mesmo por uma tangente, por uma culatra. Mesmo assim eu acho que vi um olho, e acho que ele era negro. Acho que ele era lindo. E acho que ele fechava um pouco e adormecia muito. Foi por quase nada. Foi por um susto. Foi por um erro.
Estava desesperadamente frio naquela noite, e eu acho que tu me abraçavas, dizia que me amavas e eu sentia. Eu acho que não mais me isentava, eu não mais me defendia.
Eu não era.
Eu acho que eu não era a renuncia. E eu sorria.
Em: 15/08/2010