Sobre Viagens, Penélopes, Ulisses...
Quanto mais eu leio Homero, mais me reconheço em seus personagens. E o próprio poeta, se pudesse navegar nesse tempo, ficaria surpreso com tantas Euricléias, Ulisses e Helenas... Todos, evidentemente, atualizados com seus celulares e jeans. Vocês já imaginaram que susto ele levaria com as Penélopes de hoje? Penélopes charmosas, transformadas, evoluídas... protagonistas de uma Corrida Maluca em busca de grandes novidades da cultura, da mídia... Não esperam mais por ninguém, porque também são uma espécie de Ulisses - umas guerreiras cujo ego, ocupado demais com suas armas, não permite que elas repousem numa cadeira para aplaudir filhos, marido...
É justo. As novas regras do jogo exigem uma movimentação cinematográfica, intensa de Ilíada. E essa escalada é infinita. Que estejam todos felizes nesse modelito novo de vida, esses Ulisses e Penélopes admiráveis, arrastados pelo canto sedutor da cultura, afogados em seus metais e chips... Muitos ainda um tanto defensivos, amedrontados com outros cantos... Por isso, aprisionados no banco de suas autonaves, com cintos de segurança apertados e firmes.
É pena que eu seja uma Sereia Pequena, uma decepção para Homero: o meu canto é afônico, inaudível para esses Ulisses - grandes heróis urbanos que parecem, às vezes, deixar transparecer uma fragilidade, uma lacuna que julgam imperceptível. Ou não é nada disso. É só o meu olhar observador/submisso de Euricléia* que inventa coisas, fantasia e me faz detectar sinais fictícios dessa natureza. Nunca eu tive um olhar tão meticuloso assim. Já mensurei tanto o corpo do meu amado Ulisses em milímetros, apesar dos panos, que pude decorar quilômetros da sua edênica geografia. Viajei nos seus olhos, me perdi em recônditos de onde não sei mais escapulir.
O amor também é uma viagem homérica... Quando não correspondido, causa um certo desconforto, um lamento, um pedido de deculpas. Amo um homem porque sou mulher - um continente formado de relva, regatos, pântanos, cordilheiras... Abismos. Desde que conheci esse amor, não sei mais o que é pisar no chão. E dei pra pensar no tempo, esse passageiro do breu que vem clareando. E, como uma hemoglobina, também vem trazendo e levando os elementos da minha seiva de vida... Não dou muitas horas, vai trazer certamente a mim aquela Senhora Repelente que sempre nos espera com sua foice implacável no fim do túnel e... scraft o mundo!
Por isso, tanto me aborrece essa Odisséia que hoje reinvento e vivo. Imaginem vocês que eu estou amarrada num toco da minha jangada, amordaçada, enquanto o meu Ulisses reconhece e encanta o mundo... Vocês já viram uma paixão homérica assim? A sereia ao invés de atrair o seu amado com seu canto, abre mão do seu feitiço e por pouco não se afoga e naufraga nesse amar. Enquanto isso, a Tal Senhora, eu sei, insiste em bordar o meu destino, esperando o fim do novelo para arrancar-me de um cenário maravilhoso, paradisíaco, nessa viagem linda que é viver, em que fui obrigada a permanecer na janela feito Carolina, aprisionada em meus desejos, divagações e insuperáveis fantasias. Também sou uma dependente do acaso, da sorte e da vontade divina. E aceitar os desígnios do alto é sempre um "x".
Por isso, eu pergunto a meu Ulisses, moço de sonho e de neve, viajante alado-alegre da minha cabeça em redemoinhos: já que você não pode me levar, me diz que sentido tem essa viagem aqui?
*Euricléia é uma personagem da Odisséia que reconhece Ulisses disfarçado em mendigo através de um sinal.