O Deus adormecido

É necessário, ao menos uma vez na vida, sair do jardim planejado e plantado por mãos humanas, deixar para trás sua beleza artificialmente composta e adentrar a mata selvagem e aparentemente caótica. É preciso abandonar a segurança do mundo já conhecido e mergulhar na selva intocada.

O estreito caminho pela floresta precisa ser aberto a golpes de foice, tomando o cuidado para não cortar sequer um galho desnecessariamente. Ali ou acolá aparecem gavinhas espinhosas a rasgar as roupas e a perfurar a pele, mas a dor e o tormento não podem causar a desistência. Ainda há muito pela frente.

As copas das árvores se juntam umas nas outras, impossibilitando a passagem da luz do dia. Tudo fica cada vez mais escuro e os sons silvestres tomam um alcance ensurdecedor. Uma tocha acesa na mão é a única fonte de luz a iluminar uma pequena área ao redor, mergulhando o ambiente todo numa penumbra sinistra.

O vento sopra com força, assoviando ao passar por entre as árvores. O cheiro de terra úmida indica a possível presença de um rio ou a iminência de uma tempestade. Algumas silhuetas percorrem os altos galhos das árvores, bailando de um lado para outro. Gritos, chiados, sussurros das criaturas espalhadas pela mata.

Uma claridade pode ser percebida no fundo do horizonte, entre os cipós, galhos e troncos a tapar a vista. É o destino ao qual se deve chegar. O suor, o cansaço e os arranhões no corpo recebem um refrigério ao simples vislumbrar da luminosidade logo adiante. Com um novo vigor, o trabalho de abrir caminho recomeça, já tendo diante dos olhos o destino final.

Finda a árdua tarefa. Eis o coração da floresta, o santuário em que ela esconde seus maiores segredos. Gigantescas árvores separam a floresta inóspita de uma pequena clareira, onde jaz uma grande pedra coberta de musgos e liquens – a ara de uma divindade, erigida não por algum homem, mas pela própria força da natureza. O vento para de soprar e o silêncio paira por todo canto.

Os animais e as bestas ferozes vão se aproximando do altar, mas se portam mansamente. Aves das mais diversas espécies pousam nos galhos mais baixos, todas sem emitir ruído algum. Tudo leva a crer que uma estranha energia emana da pedra situada bem no meio da selva.

É preciso aproximar-se dela, remover as grossas camadas de musgo que a cobrem como uma mortalha. Lentamente vão aparecendo signos, símbolos e letras gravadas na pedra pela chuva e pela erosão. Trata-se de uma estela ao deus que dorme na floresta, e nela está uma liturgia para acordá-lo. Os caracteres só são entendidos pelas árvores e pelos animais, e são eles os sacerdotes desse culto.

Um tremor na terra. O céu se abre e grossas gotas de chuva despencam do firmamento. O vento volta a acariciar as árvores e a tocha arde com uma intensidade misteriosa. Os animais todos se põem a rugir, piar, trinar, cantar, balir. Trovões e relâmpagos formam um espetáculo celeste. Flores e folhas emanam um perfume doce e envolvente. Entre as nuvens de chuva passa um raio de sol que ilumina diretamente a pedra-ara.

Nesse instante algo toma conta da consciência e a faz sentir parte de tudo. É possível entender a linguagem das feras e dos pássaros; é possível ver a dança das matas e ouvir a mensagem que o vento sussurra. O deus adormecido agora está acordado, e mais uma vez volta a reger as coisas todas. A floresta não mais parece um caos, mas sim a resposta de toda nostalgia humana. É o paraíso perdido, o ventre materno, o aconchego da infância, o sonho da inocência.

Voltar para trás, para o jardim? Talvez, mas não o mesmo jardim de outrora. Voltar e levar dentro de si uma semente divina, capaz de fazer desabrochar uma floresta inteira. E quando indagado por alguém a respeito de um ramo mais verde, selvagem e robusto, não hesitar em responder: “Sim, aí ele está e este é o lugar dele. Foi um deus não mais adormecido que o plantou”...

Marcel Gustavo Alvarenga
Enviado por Marcel Gustavo Alvarenga em 14/08/2010
Código do texto: T2437492
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