dez, pára, meia-noite



     Depois de uma sexta-feira cheia de trabalho, seguido por aulas pesadas & o fora de uma gata, chamei o Guliver para irmos ao Becher. Como alguém nos contou, eram 25 centavos a dose de pinga. Dava tempo de descer umas antes do último ônibus para o Centro, onde iríamos ver algum show, ou jogar sinuca.

     Entramos, e, muitos, velhos amontoados nos cantos do balcão, pareciam mesmo esperar alguém para lhes pagar uminha, em troca d'alguma história. Ostentavam barbas à ZZ Top, molhadas de saliva e queimadas por cigarros paraguayos. Mas, um deles, muy delgado, desafiou: ó, gurizada, que cês querem aqui? Eu já sou velho faz teeempo... Pausou para cuspir de lado e completou: hein???

     O Guliver pediu um cigarro solto, quebrou dois palitos de fósforo, estavam úmidos. Idem, as paredes, verdíssimofas. Um odor, de urina e álcool envelhecidos em barris de carne e ócio, se propagava no bar, bem marcando o terrortório. Fizemos que não era conosco. Um minuto.

     Acalmado, gole, o ancião nos esquecia. Um outro, batia de leve em suas costas, dizendo tôaqui, tôaqui. Quando fomos pedir algo mais, um dos de barbas mais longas, porém ruivas, de certa sobriedade, se aproximou. Ajeitou as mangas da camisa, arrastou o pé para desgrudar um chiclete e nos pediu para respondermos a pergunta que seu amigo havia feito. Dois minutos.

     O Guliver queria que fôssemos embora, jurava ter visto um revólver no bolso d'alguém. O Becher, mergulhado num jornal de ontem, só vinha ao mundo quando chamado pelo nome. Poderíamos mesmo ser mortos por aqueles semivivos? O fato é que precisávamos de um trago para prorrogar a fome. Então, pus a mão no ombro do barbas ruivas e respondi que estávamos ali para beber. Três minutos.

     Bebemos e já vamos embora. Só entramos aqui pra tomar alguma coisa enquanto esperamos o último ônibus!, foi o que eu disse em voz bem alta, já que os dois, supostamente, mais perigosos, portavam aparelhos auditivos. Ainda assim, um careca, de muletas parecia lhes traduzir tudo. O Guliver tentava acender outro cigarro, não conseguia olhar para mais ninguém. Seria um instante de bruto silêncio, não fosse a tosse, dentre outros efeitos sonoros característicos daquelas idades. Quatro minutos.

     O barbas ruivas pôs a mão no meu ombro e disse que estava tudo bem. Nos contou que os últimos jovens que entraram no boteco mataram um conhecido deles, numa quebrada, perto do valetão. Eu disse que estava certo, beberíamos uma dose e iríamos embora. Busquei umas moedas no bolso, acabei derrubando nossa nota de cinco. Câmera lenta até o chão. Foi a cena, pois então só ouvimos que ainda era cedo e que lembrávamos fulano e ciclano. Também fomos abraçados aos mais diversos pedidos de desculpas, inclusive em outros idiomas. Cinco minutos.

     Becher! Mais duas!, e ele descruzou as pernas e largou o jornal. Foi generoso nas doses. A minha desceu num gole só. O Guliver se irritou e disse que não estávamos num filme americano. Decidimos pagar uma para o barbas ruivas. Ele agradeceu e foi dividir com o de muletas. Seis minutos.

     No terceiro cigarro aceso, um outro velhinho saiu do banheiro. Usava uma camiseta do Bamerindus. Era pequeno e corcunda. Calças boca-de-sino, boca sem dentes: voceis são do róque? eu vô cantá um róque pra voceis... Começou a dançar, meio que rebolando, todo mundo rindo, exceto eu e o Guliver. Não dava para entender nada do que era cantado. Até que era engraçado, ainda mais por o chamarem de Elvis e ele ser, de rosto, bem parecido com o Costinha. Sete minutos.

     Distraídos com aquela performance bizarra, nos aventuramos em duas doses mais. O Becher, enfim, sorriu. Aí me bateu uma coisa de perceber que, àquela quase meia-noite, não era explicável o fato daqueles senhores todos estarem ali. Somada minha idade com a do Guliver, precisaríamos de mais uns dez anos para alcançar o mais jovem daqueles velhos. Fiquei tomado pelo mistério. Oito minutos.

     O Elvis cansou e o barbas ruivas voltou para pedir mais desculpas, e, é claro, ganhar outra pinga. Enquanto ele me contava o quanto era difícil arrumar serviço depois dos 50, o Guliver era abraçado pelo de muletas, pois se descobriam gremistas. Nove minutos.

     Quando o Becher estendeu a mão para dar o quarto cigarro ao Guliver, reparei no belo Orient em seu braço. Fundo escuro, bem cuidado, dos caros. Devia ser bem estimado. Num esforço para melhor apreciar a peça, meia-noite! Puxei o Guliver pela gandola, corremos, mas só pisando lá fora ele se ligou, pequepê! é mesmo, o ônibus!. Saímos já fazendo o sinal, mas o motorista só conseguiu parar uns vinte metros depois.

     Aliviados, olhamos para fora, os velhos estavam quase todos na calçada do bar. Ouvimos um deles gritando, o que voceis roubaram?, outro, vão com deus!, e um terceiro, perderam carona de vemaguete!. Um quarto, claramente ia dizer algo, mas se afogou e começou a tossir. Não conseguimos mais olhar para trás. Sequer comentar. No entanto, conscientes de que a noite, e ela estava toda pela frente, seria apenas um eco daqueles dez minutos. Enfim, a desesperança mostrou com seus fantoches no que pretendia nos transformar. Felizmente, a ironia fez o Guliver encher ainda mais a cara, com uns conhecidos, a ponto dele pouco lembrar do que se passou no Becher. Vagamente, da palavra vemaguete. E d'alguém, de revólver, ter pisado num chiclete.





 
17/11/2001
Lucas de Meira
Enviado por Lucas de Meira em 08/08/2010
Reeditado em 16/07/2016
Código do texto: T2425150
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