Não Basta Amar?
Encontrei você quando sentido não mais havia
Quando minhas noites já eram dias
O seu jeito carinhoso, sua risada argentina
Mostraram-me um mundo diferente
Pude sentir mais uma vez o chão sob meus pés
Nenúfares monetianos na alvorada do viver
Na cidade não havia somente carros
Seres humanos passando uns pelos outros
Sem bom dia, boa tarde ou bonne nuit
Na cidade não havia somente prédios
Grades nas janelas, tristeza na mesa do bar
Bar e Café Beirute
Do outro lado da rua um beijo acontecia
Antes de entrar no ônibus para ir trabalhar
Um telefonema inesperado minutos depois:
“-Já estou com saudades!”
São lembranças, cicatrizes numa alma ingênua
Mas quanto pesa em meu peito
Perto das recordações de minha infância?
Balança descalibrada, ingrata
Amar só não basta
Não é o suficiente carregar sobre os ombros
As dores e os sonhos de um povo incrédulo
Corrompido pelo capitalismo moderno
Querer devolver o aroma aprazível aos jardins
Entre hortênsias e gardênias: necrochorume
O odor do orgulho, da vaidade, do egoísmo
As conversinhas fúteis nas rodinhas de amigos
Regadas a cigarros e bebida barata
Um velho debruçado na janela observando a chuva fina
Apagar a poeira da vereda de calçamento irregular
Tudo isso se repete, se mistura no vão de nossa existência
E todo esse perceptivo não é o bastante?
Dizer o que se sente parece assustar as pessoas
Fingir ir ao toalete e sair de fininho pela porta dos fundos
Sem pagar o preço, nada mais justo
Que se danem os sonhos e as dores do mundo
A mestiça com balaio na cabeça
O catador de papel no centro da metrópole
Sob o sol do meio dia, como um animal de carga
O malabares com bastões em chamas
Feito por uma criança no sinal
Que o fogo engula as suas vestes podres
Amar só não basta
É necessário comparecer a um espetáculo plebeu
Sorrir sem vontade, ter uma conta no Google
Um ipod e uma câmera digital
Assistir a um reality show na tela do seu celular
Mas o que me deixa feliz
É andar descalço pelo quintal assoviando Milton
É o cheirinho do café pela manhã
Um tabuleiro de xadrez, um violão
Jovem poeta cafona e extraviado que sou
Reconheço, em perfeito juízo e em pleno gozo
De minhas faculdades intelectuais
Na cidade agora a magnificência deplorável
Folguedos banais do proletariado dentro do coletivo
Meus olhos fixos na paisagem postiça
Números, cores, formas, marcas
Que se arrastam pelo trajeto até a região central
Parecem suplicar de joelhos a minha atenção
No desembarque correria
Pessoas atropelando umas às outras
Navego por esse mar de gente
Os olhares se cruzam com desconfiança
Dobro a esquina e avisto o segundo ônibus
Corro acenando feito um louco
Tropeço, levo as mãos ao chão
Zombam do poeta os boêmios do Beirute.