Ausência

Talvez as ações terminem pela ausência. Ausência... E só. A mesma ausência existente nas páginas da última carta. Algumas palavras ganham mais significados quando andar para frente não parece o bastante. Ele tenta lembrar o que escreveu, evitando procurar por respostas nas cartas guardadas no alto, onde as pontas dos dedos alcançam com dificuldade.

Uma caixa pequena. Azul e branca, que como gente suspeita, guarda segredo de boca fechada, e ainda assim, sem estar trancada. Ao contrário do que ele pensa, deixando-a ali, longe dos próprios dedos, e dedos dos outros, curiosamente na simples tentativa o segredo escapa. Talvez toque uma música enquanto a vida acontece, uma única música que nos une e ao mesmo tempo nos distingue – No peso da palavra não dita. Antes que eu possa dizer que ele a ouviu, antes mesmo de ter a certeza de que ele pode ouvir algo além do que tocava próximo aos ouvidos, renuncio ao posto de terceira pessoa do singular. Ele, certamente sou eu, mas tenho convicção de que não sou Ele. É difícil pensar numa forma simples de começar o que vim contar, nada é tão perturbador quanto o silêncio vasto que naquela casa parecia palpável.

Horas antes da formatura puxou as meias até a altura dos joelhos, eram marrons de tenra idade, talvez entenda o que aquele gesto pode significar, talvez o antigo dono não lembrasse mais delas, estavam na gaveta há muito tempo e naquele dia de chuva, foram mandadas embora, para outros pés, acompanhadas por um velho par de mocassins, esses por sua vez estavam marrons do descuido da velhice. O antigo dono era pai da única pessoa que chegou a entendê-lo, quando parecer normal não era mais uma tentativa. Esperava ansioso pela resposta, o telefone tocou num repique quebradiço, anunciando o que já se sabia sem precisar duma confirmação – Aproximou-se com os olhos presos no aparelho, pescou o fone no segundo toque, identificou de imediato a voz na outra extremidade da linha. A mãe forjou uma resposta negativa, mas em seguida sorriu, não foi preciso muito para que ele entendesse, nenhuma resposta era tão ruim – Quanto saber que se separaria da filha do antigo dono do mocassim e das tais meias que estava usando.

Não encontrou camisa branca para usar embaixo da social creme, que ganhou de presente da avó, o cinto e os sapatos também foram presentes e eram igualmente... Na cor Creme, se é que poderia considerar cor aquela coisa entre o tom pastel e amarelo mostarda. Nas costas da camisa que a mãe estendeu, disposta a fazê-lo usar qualquer outra que se aproximasse do branco, a propaganda de um evento de dois anos antes – XXVII Encontro de Enxadristas.

Não... O número não era esse, estava entre o VII e XIV, mas vinte e sente é o número que faz pensar na importância que dávamos a ele na época. A filha do antigo dono das meias (vale ressaltar) fazia parte de um outro grupo... Que incansavelmente repetia piadas com o número – XXVII, 27, vinteesente! Ouvi algumas explicações... Mas ainda hoje não sei em qual delas acreditar. Ela, a filha do dono das meias, disse certa vez que se tratava de um trecho de música, “Mas não vou cantar, não!”. Ocorreu d’eu perguntar uma segunda ou terceira vez em conversa de bar, e ela respondeu que o número estava ligado a alguma sequência cabalística, ou coisa do gênero, mas em outras vezes que repetição era forma de confortar a ansiedade, assumiu que 27 havia sido o número de vezes que... “Trepamos no banheiro... No banheiro desse bar”.

A mãe insistiu na carona, mas a ideia de Kombi descambando pr’alguma comparação a lá monstro roncador, não agradou. Preferiu ir a pé... A escola não ficava tão longe, despediu-se e evitou discussão inventando mentira, “Me esperarão na escadaria”, saiu às pressas, os sapatos rangiam novos. Anoitecia, e ele sabia que não faria frio, mas não se preocupou em tirar a jaqueta, caminhou apressando o passo olhou no relógio, quinze para às sete, sentiu o suor empapar a palma das mãos, estalou dois dedos, largou a chave dentro do bolso da calça, “O convite” – pensou. Tateou os bolsos, suspirou, “merda de convite minúsculo... Pra quê, convite menor que tíquete de ônibus?” Parou, puxou o forro do bolso da jaqueta, pimba! Lá estava ele, grudado, praticamente invisível.

Escrito em letra miúda, o nome do formando, “Fulano de tal e número da mesa“. Não, não era ele o “fulano de tal”, ele não quisera fazer a formatura, para falar a verdade, não fora decisão propriamente sua. Fazia tempo que não pensava por si mesmo, e quando pensava era longe da filha do antigo dono das meias, Ahm... Para evitar chamá-la assim toda vez que citá-la aqui, cansando os olhos em repetição longe de mais um apelo cômico. Façamos um acordo, feche os olhos , agora pense em uma palavra que defina alguém... Alguém, que teve a formação do caráter influenciada pelo – Rock dinossauro, cores escuras, joelhos rasgados, tênis sujos e agressividade verbal em piadas supostamente inteligentes. Pois bem, se você conseguiu pensar em uma palavra, ou nome para esse alguém, continuemos. Enquanto ainda tenho em número alguma explicação... Nas últimas semanas de aula, outros integrantes, foram acrescentados ao antigo trio esquisito. E antes que me esqueça e que corrija, já não éramos mais um trio quando isso aconteceu, o terceiro integrante, sei que poderei considerá-lo, mesmo reconhecendo a cara feia que a menina dos tênis sujos faria . O sujeito que classifico aqui como um autêntico sadomasoquista, parecia reagir a uma prioridade um tanto quanto suspeita. Antes gostaria de aprofundar no assunto. Dar um nome a ele talvez me faça ainda mais cruel, então escolho um outro acordo, mas desta vez não se preocupe em fechar os olhos, pelo contrário, arregale-os o máximo que puder, e olhe a sua volta... Ahm. Procure um objeto próximo, suponho que muito provavelmente se for alguém que possa considerar-se, digamos... Normal. Não está lendo em uma sala vazia, enfim... Seja lá de onde estiver lendo. Procure, procure, procure algo, animado ou inanimado, que seja rotundo e espaçoso, que te faça rir mostrando os dentes, ou não. Procure o “Ou”, procure o que mais se assemelhe a definições da palavra – Gordo, no dicionário. Se tiver sucesso na busca, ótimo, está no caminho certo. Antropomorfizar uma cômoda dando como exemplo um garoto rotundo... Em minha mente, mesmo conhecendo o sujeitinho, desculpe! Sujeito. Vem-me à imagem de uma cômoda, daquelas antigas realmente espaçosas com muitas gavetas e pernas curtas. O que me faria rir, seria o andar desengonçado e as piadas que ela contaria... Se fosse possível vê-la viva, e o que daria a condição de sadomasoquista para uma cômoda? Quem sabe... Bater gavetas?

Mesmo pisado. Consideravelmente humilhado e desmoralizado na frente de toda uma classe, sendo alvo de piadas implicantes. O “garoto-cômoda”, rotundo... Permanecia lá. Ao nosso lado, dizia que no fundo ela, a garota dos tênis sujos, também o amava. E para mim, não existia amor naquela idade. Amor, só era amor em livros onde um homem louco luta com (monstros) moinhos de vento para salvar sua donzela... Onde dois jovens de famílias rivais, apaixonam-se e morrem (por sutil) engano e finais felizes (tornavam-se) incansavelmente recorrentes. Amor, só era amor nas músicas em inglês, que falavam sobre “Storms”, “Hands”, “Hearts” and “Yeah, yeah, yeah”. Amor, só era amor em filme, baseado em romance semi-autobiográfica de Marguerite Duras. Amor, só era amor quando espiar a filha da vizinha de lingerie era motivo para meter a mão dentro da calça. Sim, amor é tudo isso... E creio que com quase quatorze anos ainda há um percentual a se descobrir.

Atravessou a rua em direção à escadaria vazia, espiou o relógio outra vez. Sentia o suor aumentar debaixo dos braços, mas recusava-se em abandonar a jaqueta. Bastava acreditar que era um escudo, uma armadura... Uma passagem para não se tornar alvo de nenhuma das piadas dela. Dizem que alguns medos são irracionais, medo de altura, por exemplo, ele poderia dizer, que a garota dos tênis sujos... Era um tipo de altura.

Estendia-se até onde o poste de luz iluminava os carros estacionados na rua, no topo. A conheceu perto da quarta-série, a escadaria. A conheceu, meses após a queda do candidato a prefeito. Era dia chuvoso, as flores que caiam das árvores espalhavam-se, inevitável um escorregão, motivo de riso aquela queda. Galgou os degraus prendendo a respiração, as mãos foram parar nos bolsos, comprimiu os lábios olhando para trás. “Sozinho” – Pensou. Os passos rangeram por mais alguns metros, então viu um carro subindo na contramão, os portões da escola estavam abertos, mas sem sinal de que haveria alguém esperando na entrada. Do carro saltou uma família oriental, conhecia o irmão mais velho, um japa alto de monocelha, bigode... E agora gravata borboleta, havia sido ele o segundo lugar no encontro de enxadristas dois anos antes. Besteira! Pensou. Não precisava mais jogar xadrez, não com algum membro daquele clube ridículo, cheio de garotos com um potencial considerável – A viver longe do resto da humanidade. Prendeu o convite entre dois dedos. Esperou que a família oriental ganhasse o terreno, o pátio escuro, coçou um olho por trás dos óculos e seguiu em passo firme.

Jean Levi
Enviado por Jean Levi em 27/07/2010
Reeditado em 11/08/2010
Código do texto: T2402953
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