parábola

 


 

 

     Ilegível era a gota d'água desabrochando do teto. E, Álvaro, horas, a fio, flertando com a hídrica flor. Goteirasse antes de levantar da, encharcada, poltrona... Pegou o telefone, discou e proclamou sua dependência:
     - Eu te amo!
     D'outro lado da linha, uma idosa sorria:
     - Quer falar com quem?
     Não cedeu. Prosseguiu.
     - Com a Rita, ela está?
     - Só um instante, moço...
     Instanteterno, quase o fez cancelar o minifesto suicida. Decidiu não desistir. Ainda não havia dito seu nome.
     - Alô?
     - Eu te amo.
     - Quem me ama?
     - Eu.
     - Eu quem?
     - Alguém.
     - Alguém quem?
     - Alguém que talvez você nem lembre.
     - Que não lembre por que?
     Aí ele encucou. Foi mau, mas como pode, ela ser tão... assim?, pensava, surpreso, infantil. A coisa ia perdendo a graça e o coração reduzindo o ritmo platônico, ingressando num patamar um tanto quanto...
     - Banalidades, - respondeu, revirando os bolsos por um cigarro.
     - Olha, eu tenho um namorado, e se você está sendo algo que não é você, juro que vou perceber e vou desligar!
     Pronto. Que mania de se apaixonar por mulheres problemáticas, hein? As goteiras, engrossar da chuva, multiplicadas. Os pingos nas panelas e bacias já estorvo auditivo. Logo, nada de cigarro no bolso nem em lugar algum, confuso, tentando fugir da descoberta de o quanto Rita estava longe de ser o que seria, desligou. Veio o arrependimento, depois a raiva. Então, o vazio. Melhor assim, preferiu.

     Novamente, na poltrona. Rita se foi sem vir. Um vício a menos? Não, ela era só um transe entre um transe e um recomeço, divagava.
     Meio-dia e quinze ele acorda. Era a esposa na porta, trazendo o Alvinho da escola.
     - Pai, quanta goteira!
     Beijou o guri, depois a mulher, no rosto. Tarde toda ficou no telhado, consertando-se da vontade de ter errado. Eita tentação fogosa. Ruiva. A vergonha descia com a noite, na chuva que voltava, com o filho querendo brincar. Com a mulher orando por um dia melhor.

     Só tarde tarde, entrou no quarto. Ficou numa cadeira de frente pra cama. Lama. Parou de beber, quase de fumar. Pararia de sonhar. E só depois de chorar, deitou, maravilhado com o sono da mãe de seu filho, fêmea leal, dedicada e carinhosa. Mas só com o sono. NÃO!, exclamou por dentro, levantou quase caindo e calçou as velhas pantufas dela. Foi até o telefone e ligou pra Rita. Ocupado. Ocupado. Ocupado. Seria um outro?
     - Ah!
     Lembrou dum cigarro escondido na estante, no meio dos Borges. O fumou, de janela aberta, camisa idem, vento no peito. No fim das contas, nada pensou. Era feliz por ter o amor da família, ciumento até, mas incompleto, quase por completo. Rita, Rita, Rita, e, irritado, finalmente foi dormir. Sairia cedo procurar um emprego, e o cansaço por pouco não era um medo. Então, como não fazia desde que, bem, não conseguiu lembrar, abraçou a esposa, dando-se por vencido. Ainda, vez mais, levantou, desta, pra cobrir e beijar o filho, prometer mais carinho e aquele carrinho que eles viram na tevê.

     Quando manhã, acordou com o café que amava invadindo o ar que amava. E com o sabiá que amava cantando na figueira que amava. O filho cantando no chuveiro e a esposa escovando os negros cabelos, sorrindo pelo espelho.

     A Rita nada mais seria que mais outro fim de mundo no fim do dia.

 

 

 

 

 


21/11/2000

Lucas de Meira
Enviado por Lucas de Meira em 18/07/2010
Reeditado em 25/05/2014
Código do texto: T2386020
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