ALGUM MILAGRE
Não quero que a poesia seja lenço,
embora o seja, muitas vezes.
Não quero que a poesia seja cajado,
embora o seja, muitas vezes.
Eu saí de casa para ir ao médico,
e na esquina deparei-me com um cão abandonado.
Magro, sujo, com muita fome.
Eu tinha comida no carro (como sempre tenho).
Ofertei-lhe. Ele avançou na comida,
mas somente depois de aguardar com paciência
que eu a tirasse do saco plástico.
Tinha ainda uma coleira no pescoço.
Não fugiu, certamente. Mas se fugiu,
foi para buscar uma vida melhor (!)
em algum lugar.
O que faço com ele - quem passa de carro
pela estrada, nem o vê. Eu o ví, a um canto,
sozinho, olhando para o vazio,
à espera de algum milagre, que se traduza
em um pouco de comida - o milagre de sua vida.
O único milagre que deseja na vida: comer.
Não há poesia na fome.
Não há poesia num cão abandonado.
Não há poesia na crueldade humana.
Mas certamente havia muita,
muita poesia,
naqueles olhinhos que, humildemente,
esperaram eu colocar a comida no chão.
*** Em tempo: esse "menino" foi por mim adotado nesse mesmo dia, chama-se hoje "Picolino", está gordinho, alegre, feliz junto com duas outras companheirinhas e o amamos muito.