[Os Matadores – Sô Raul Clemente]
[No velho Goiás, mas fronteira de Minas — o mundo que me plange]
Era um tipinho assim, o Sô Raul Clemente:
Sombria catadura, de miúda compleição,
Olhinhos escuros, apertados, prateados de tão brilhantes,
Pele cor de cuia, contrastando
Com uma estranha brancura
Na palma das mãos finas e magras —,
Numa palavra, um hominho,
Mas que hominho!
Dele, as pessoas cortam voltas,
Falam baixo, murmuram;
Sabe-se lá quantas mortes
Ele tem nas costas?!
Eu ouvi falar em vinte ou trinta,
Mas falando em mineiro mais usual,
A conta ficaria em vinte e duas —
Este é o número de facadas que os fuxicos
Das rodas de gente à-toa geralmente contabilizam
Para as mortes ocorridas em brigas de zona.
Mas o fato é que o tal hominho
É mesmo perigoso, mata para ver cair!
E disfarce bom ele tem: trabalha “na Polícia”,
Isto é, todos os sábados, percorre os hotéis e pensões
Para carimbar os livros de hóspedes — uma sinecura
Que obteve de algum poderoso a quem prestou serviços.
Ele “quebra milho” por encomenda,
E, dizem, que nem cobra tão caro,
O preço é acessível a qualquer pessoa
Que deseja um trabalho limpo, sem pistas —
É bastante, após receber uma ofensa,
A pessoa pôr o ódio em conserva, esperar meses,
E, dependendo da gravidade, até alguns anos
Para que todos se esqueçam do entrevero;
É só aí que o Sô Raul Clemente entra em ação:
Quando ele até já visitou o desafeto da encomenda,
Deu balinha para as crianças, apresentou seus respeitos
Para a futura viúva, ele estuda os trajetos da pessoa,
E então, friamente, ele mata;
É trabalho limpo, de um ou dois tiros apenas,
E bem no longe das vistas dos outros.
Ele está sempre do lado contrário da fronteira,
Ou, seja em Minas ou em Goiás, conforme o serviço
Tenha sido feito num ou noutro estado.
Passado uns tempos do acontecido, ele volta, tranqüilo,
E retoma o seu ofício de carimbar livros de hóspedes.
E numa manhã de sábado, ele adentra a nossa pensão;
Chega de mansinho, sem alarde, com seu paletó azul.
Eu o vejo cumprimentar minha mãe:
— “A cumo vai, Dona Dagmar, minha conterrânea?!”
E ela:
— “Bem, Sô Raul, vou indo bem graças a Deus!
Quando é que voltou da nossa Araguari?”
Ele desfia alguma história de parentes
E conhecidos comuns de nossa família,
E despede-se: — “Deus esteja, Dona Dagmar!”
Quando ele sai, ela se persigna,
Olha os meus olhos assustados e diz:
—“É melhor a gente viver em paz com Diabo, meu filho!”