[Descendo aos Infernos]
Ah, essa minha catadura molambenta, judiada do tempo... mas o pior é que nem no bico do corvo eu estou! Estivesse, e eu estaria seguro, na esperança confortável de descer aos círculos do Inferno. Suspenso no ar, eu veria passarem por mim penhascos escuros, animais estranhos, vários de tipos de demônios, machos, mas também fêmeas - que consolo besta é este, elas são demônios também... Ah, como devem ser tetricamente belas as paisagens sombrias do Hades... Rios revoltos, ventos sibilantes, pontes quebradas, encostas esboroantes... não importa - eu estaria seguro, sendo conduzido num voo mágico... dizem-me que, se bati na cruz com uma cana, eu tenho de pagar... eu era criança, e bati sim, mas pagar o quê, oras... eu não sou cristão - sou é pagão!
Ah, mas assim como estou, desamparado, sozinho, e com essa gripe miserável, essa perna claudicante que não melhora, eu já estou é caindo, sim, caindo do bico do corvo!
Nem o negro corvo quer me levar - vai me deixar por aí, apodrecendo, caído nestas trilhas de gado que me viajam pela mente - ah, as grandes invernadas de Minas...
Serei uma ossada branca ao sol de inverno, como um enxame de marimbondos zunindo, entrando e saído dos brancos ossos... E de noite, a lua engendrará assombrações com essa ossada - no Fim, até para isto eu servirei - para assustar os passantes...
Ah... que nem tenho uma face, uma costa de mão carinhosa para apalpar-me a testa febril... ah, junho que me leva, longe leva... Leva sim, o que até o corvo se recusa a transportar!
[Penas do Desterro, 09 de junho de 2010]