PRÓLOGO-PREFÁCIO PARA UM LIVRO QUE NÃO EXISTE
Quando comecei a datilografar estes textos, da Antologia que não existe, (na ocasião, em 1997, eu ainda não tinha computador) pretendia recapturar a essência da verdade de um tempo que, não tendo existido nunca, jamais deixou de existir; de um tempo que imobilizou os relógios e os rumos os quais, apesar disso, continuaram a fluir, à minha ausência e à minha revelia.
Quando – repetindo – comecei a datilografar estes textos, pretendia re-conhecer o homem que os escreveu, o autor deles, textos, o homem que jamais conheci para, reconhecendo-o, reconhecer também a mim mesma, a esta desconhecida dos tempos atuais. Pretendia reencontrar a palavra que foi minha na palavra do outro, os sentimentos que tive através da declaração, nestes textos, do sentimento desse outro, as recíprocas verdades e mentiras, calabouços, artimanhas, silêncios, alucinações, vozes inimigas, diálogos invisíveis, encontros inúteis, traições; também a compreensão perfeita, o perdão à distância, talvez a calmaria, talvez o recomeço, o esquecimento, o germe de um tempo novo.
Quando comecei a datilografar estes textos, há alguns dias neste agora de 1997, textos cuja escrita se iniciou em março de 1990, já não conseguia crer em milagres, como cria há sete anos, nos milagres que, ao longo de tais sete anos cabalísticos, aguardei no âmago do quarto e do silêncio. Já não conseguia crer em milagres, mas era incapaz de renunciar ao rosto do sonho por trás da máscara, fosse qual fosse esse rosto.
Durante estes dez dias fui retecendo os fios da história que jamais aconteceu, Penélope em sua ilha fora de qualquer idade e geografia e, muitas vezes, durante o percurso das linhas, pude ouvir o silêncio de Ulisses no oceano acompanhando-me nessa tarefa, e era como se tal silêncio repetisse, ad infinitum: “Meu nome é Ninguém, meu rosto é a máscara que você vê, nada mais”.
A máscara, trágica e cômica, a farsa, o fantasma da ópera recitando um melodrama burguês, uma cantora arrancando os cabelos até a calvície, dois personagens percorrendo as ruas da cidade à procura de um autor, bêbados, à exaustão, da sua própria inexistência, cada qual caminhando sozinho e por alamedas diversas, ainda que nos cenários da mesma peça, representando para públicos diversos o seu solilóquio. E outros dois personagens volatilmente evocados aqui e ali, de um dos quais não sei na realidade, nada, o outro sendo meu “companheiro” há mais de seis anos, ainda que, como se vê, este companheiro tenha que ser colocado entre aspas.
Durante dez dias, a re-caminhada à procura de sentidos mais do que de autor, à procura de espelhos e de águas, e de Narciso. E, para isso, como tantas vezes antes, como infinitas vezes antes, foi preciso fechar todas as janelas do dia e dos gestos cotidianos, na tentativa de capturar, no escuro, a claridade do mundo que não existe, na tentativa de capturar, ao menos, o espelho de tal mundo, as águas primordiais das estrelas que se foram há milênios, para longe das luzes que vemos no céu.
E, durante dez dias, apenas nítido o rosto da vergonha por essa absoluta solidão, a solidão dos condenados a carregar tijolos de um lado para o outro, para nenhum edifício, a solidão dos que se consolam com nenhuma palavra tomada de empréstimo, a solidão dos que não sabem com quê moeda resgatar a dívida imperdoável, da qual não se lembram. A solidão.
As horas continuam, os relógios nunca estiveram efetivamente parados. A máscara, ou melhor, as máscaras, continuam, continuam inverossímeis os rostos por debaixo delas; teu rosto para mim, meu rosto para ti. As palavras da tua boca inverossímil e as respostas, também inverossímeis da minha boca continuam, tanto quanto o teu silêncio, homem. Não há nada que consiga, de verdade, dizer ou calar a mentira ou a verdade dessa história em que acreditei ou em que acreditamos tão completamente.
Sou apenas capaz de sonhar claramente com o último poema e com o último silêncio, nada há de visível para além disso. Sou apenas capaz de sonhar com Ulisses realizando meu derradeiro sonho. Tudo o mais soa-me o desconhecível, o absoluto imponderável.
Este é o décimo parágrafo do prefácio-prólogo para o livro que não existe, chamado ANTOLOGIA DA LUZ E DA SOMBRA, livro cuja capa ( que, evidentemente, também não existe) ostenta, mescladas, as figuras da Comédia e da Tragédia gregas – não conheço a figura que representa a Farsa ; o olho esquerdo representa a Tragédia e o direito, a Comédia; do mesmo modo, isto é, simetricamente, estão representadas tais figuras em cada uma das metades da boca; olhos e boca, ascéticos, sobre as cores branca e negra a dividirem, perpendicularmente, o espaço na capa frontal, juntamente com o título já citado ANTOLOGIA DA LUZ E DA SOMBRA, título e cores igualmente inexistentes.
No décimo - primeiro parágrafo gostaria de encontrar-me alguma imagem limpa, alguma palavra doce, algum silêncio reconfortante, alguma certeza de perdão para os dois personagens – nós dois – que esvoaçam pelas páginas deste livro que não existe. Como não me sinto capaz de fazer isto agora, ouso apenas sonhar, como última presença, a projeção desta imagem, deste silêncio, deste perdão em algum dia futuro, em alhures dia futuro.
“.................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................”
Onze parágrafos escritos, em dez dias de maio de 1997. Neste momento, após digitá-los, a tais parágrafos, na ocasião datilografados, estamos em 31 de maio de 2010, treze anos depois desse prólogo-prefácio para o livro que não existe, e vinte anos depois do início da odisséia que não houve, apesar dos naufrágios – reais – nas vidas de Ulisses e de Penélope.
As linhas em branco representam o tempo entre 2001 e o presente ano de 2010, tempo em que os textos a contarem os Tempos de Origem, pararam de ser escritos. Ao longo desse tempo, o universo mental do Autor do livro que não existe transferiu-se para Outro Continente de si mesmo; a parte dele que permanece Neste Continente continua Incógnita, para ele e para mim. Incógnita, mas, Presente, Presente sempre, eu nele, ele em mim; presentes ambos, Presença Terrível, que tentamos negar o tempo todo; Presença que, invisível, coloca em risco, cotidianamente, os alicerces do meu mundo e, talvez, também ainda coloquem em risco ao menos algo dos alicerces do mundo dele, desse homem, do autor do livro ANTOLOGIA DA LUZ E DA SOMBRA, o livro que não existe.
Zuleika dos Reis, em 24 de maio de 1997; em 31 de maio de 2010.