[A Energia dos Olhos do Gavião]
...Abri a porta do carro, virei-me, pus os dois pés no chão, senti a terra firme, descrencei de tudo, e cuidei: mais um dia, entre cercas, mais um dia... O estupor de ainda estar vivo, e de dar pelas coisas, ou pela falta das coisas — cadê o gavião que anda, sim, anda em passos lentos pela beira da pista? Minhas vistas se escureceram... e quando voltei a enxergar, pensei cinza-escuro: por que estou vivo, ainda... e sem conseguir descer do carro, incerteei o olhar pelo campo: uai... mas cadê o gavião... acostumado já com o barulho dos carros, ele nem voa quando eu chego, continua a caminhar, calmamente, e me olha assim, de tão perto, mas sem desafio — estranha-me, ou me reconhece?
Segurando a porta do carro, eu olhava o cerrado domado à minha frente... os cupinzeiros; o cipó da corda-de-viola que rasteja sempre onde não devia de, mas aqui, nem problema cria; as lobeiras; as moitas de assa-peixe; o meloso injuriento crescendo ali em volta de uma moita rala de capim-navalha... pois então... nessa capoeirinha chinfrim, alegre (que sei eu do que vai na cabeça dos bichos?) pula aqui e ali, um pica-pau da cabeça marelinha. Se parece tão descuidado assim, é que o gavião não veio hoje espiar o campo; estranhei a falta de sua recepção, ave imponente, senhor da região, e com aqueles olhos brilhantes, espiando os meus movimentos. Onde andará o majestoso gavião?
Aguardo ainda mais alguns acordes da sinfonia de Schumann antes de virar a chave do carro, reduzindo-o à inércia, ao silêncio. Inércia... eu, encerrando a minha vida entre cercas... pernas fracas, mente memoriosa de passados erros, corpo memorioso de experiências que nunca hão de se repetir — em tudo e por tudo, um desastre que encomendei a mim mesmo — a vida? Assim me parece...
Falta-me tanta coisa, tanta coisa... tantas vidas que eu poderia ter tido, e não tive. Tanta terra a palmilhar. Tanto mar para sorver-me a visão perscrutante de horizontes. Tantas montanhas para me dar lição de alturas, de obstáculos a serem vencidos... Tanta luz, tanta luz a tornar as flores amarelas uma visão de esperança, tanta... logo, o ipê amarelo tornará me dar a visão mais intensa de que a finitude é a única certeza, e que é preciso viver já, já...
E eu aqui, parado... ponderando... sofrendo-me, sim, sofrendo-me... quanta energia criadora, energia de marcha à frente há nos olhos do gavião que hoje não veio me receber? Ah, que falta me faz agora, sentir a energia dos olhos do gavião! Reinventar a vida — agora, eu? Como, se esta energia me falta quando mais dela necessito? Alternativa? Bem, guardarei esta moeda para Caronte...
[Penas do Desterro, 17 de maio de 2010]