[03h00 e Eu]
Graduação alcoólica? Sei nada disso não; ando até bebendo menos,
pois estou morrendo... Agorinha, voltando pra casa - solidão não mata, ou este carro estaria trombado num poste - cruzando pelos, ou com, os seres da noite... paro, falo com eles, quero saber... o preço da hora, da vida esvaindo-se?
Meus olhos e os seres da noite: catadores de papéis, trapeiros, putas, cães noctívagos, cães mesmo, melhores que gente; e ratos, como há ratos nesta cidade. A noite é deles. Há ainda os seres de afirmação duvidosa, o pessoal do "tem quem quer", e aquele bêbado magro, lépido - leva vantagem, salvaria Roma! - com uma sacola preta nas costas - Todo esse povo da noite, que de tanto sofrer, já nem sabe, nunca soube, outro modo de viver, tem calos de aleijado de nascença, duros de cortar. Eu para eles, eles para mim - quem somos?
Donde vim, por que estou aqui? Por que estão eles aqui? Mas pior: por que os encontro, por que os vejo? Esta é a questão fundamental! Por que os vejo? Por quê? Quem sou eu que os olha e os vê, e fala com eles? Um doido? Um deles?
Como eu ia dizendo, solidão não mata... no meu carro, silencioso, macio, esta é a última cerveja. "A Lei?... Ora, a lei!" E nem sou eu o autor desta frase. Diana Krall - esta tesão de voz - canta "Boulevard of Broken Dreams", canta especialmente para a minha solidão.
De súbito, algo estranho à frente, e vindo na contramão. Freio macio, para não perturbar a música. O objeto não tem luzes e vem na direção do meu carro. Desgraça! Vejo... É um cadeirante de barba hirsuta que se esfalfa em tracionar-se na pista da avenida mal iluminada... às 03h00 da manhã! Tem um pé aleijado enfaixado, a gaze branca refletiu a luz dos faróis do meu carro - sorte! Salvo pelo pé enfaixado!
A comoção, a náusea que esta visão, esta aparição me causou! A Fenomenologia, o pouco que sei dela - Husserl, Heidegger, Sartre e cia - vem-me à mente: isto é um fenômeno, uma aparição?! Ara, à merda a Filosofia! Ah, que doença é esta que eu tenho de empatizar-me instantaneamente com os sofredores do mundo - não piso em formigas, pois imagino-me às vezes como pertencente ao povo das formigas. Lembro da historia de Gulliver, ora a gente é gigante, ora a gente é formiga, liliputianamente falando.
Bem... lá se foi o cadeirante pela avenida, sei lá se algum outro motorista estava atento ao pé aleijado enfaixado de branco - única sinalização que ele dispunha, palavra, sem nenhuma ironia! E eu... eu só vim embora, "registrar a ocorrência" aqui! E novamente prometo emendar-me, dormir cedo, tomar remédios na hora certa... e não beber mais. Vou falhar outra vez - sou como eles! Sou um deles!
[Penas do Desterro, 08 de maio de 2010]
A ideia do título? é da menina Raíssa que comentou textos meus... copiei descaradamente dela... "daptei"!