... contemplar os campos de trigo

Eu queria a contemplação dos campos de trigo

mas a vida colocou-me à mesa o farinha, o fermento,

o óleo e me disse: faça!

Eu queria fotografar o por de sol,

poetar o bocejar de mais um dia,

mas a vida me disse:

hora de alimentar o cães, hora de recolher a roupa no varal!

Eu queria fixar meus olhos na chuva e ouvir

o Largo de Haendel e ascender-me a planos do espírito

onde minha alma desliza sobre estrelas imaginárias,

numa ladeira azul onde órgãos cantam meus sonhos.

Mas a vida me disse: veja se lá fora está tudo certo,

se não vai alagar nada, feche as janelas,

desligue os aparelhos, porque vem grande tempestade!

Sim, eu queria, queria, queria...

mas Deus deu-me essa vida - e por ela eu me deixo levar

como uma criança se deixa levar

pelas mãos de sua mãe.

Não posso vivê-la pela vitrine. Não posso vestir

uniforme de mosteiro e querer ganhar os céus.

Os céus são os meus pés e minhas mãos

quando faço, quando ouso,

quando não faço folclore intelectual e

exerço a função de viver.

Nos vestígios de minhas palavras,

encontrarão, um dia, talvez, um grão desse trigo que amo,

uma lágrima dessa chuva que me penetra a alma,

e essa música de Haendel, que é o meu espírito

lentamente erguendo-se para dormir na imensidão.

http://www.youtube.com/watch?v=rq1Iv3DkwVs

http://www.youtube.com/watch?v=PoAhxAlW6QY