[A Festa-Guerra da Vida]

Céu de chumbo em Penas do Desterro... também, que novidade, por isto mesmo é que a este lugar sem alma eu chamo Desterro, e com todas as Penas, todos os suplícios! Aqui, a gente não nasce, a gente escorre fora do ventre materno, por default, ou por mera imposição da necessidade.

... Sim, sob um céu de chumbo, lá vai um estrume de gente tracionando uma carrocinha cheia de papéis velhos - vai ali, no acostamento da estrada, enfeando a paisagem e aumentando os riscos de quem passa de carro... se, de súbito, a gente precisar do acostamento... está ocupado pela alimária humana e a sua lenta carrocinha de papéis velhos!

A carga de papéis é tão alta que, olhando de trás, não diviso a figura inteira, mas apenas, sob o assoalho da carroça, lá na frente, os pés descalços, como dizia minha mãe, feito lajes, esparramados no chão, e com grossas e escuras gretas nos calcanhares rachados. Lá vai... a carrocinha oscila à medida que ele avança pelo acostamento da estrada que sai de Penas do Desterro para o litoral.

Penso... e penso... e vejo que, por um triz, por algum acidente que ninguém, ninguém no mundo saberia me explicar - somos todos especialistas em fabricar, organizar não é da nossa alçada (Bergson) - não estou eu lá no acostamento, alimária puxando a carrocinha de papéis velhos! Por pouco... como pude escapar a este destino?! Como é que me tornei um cientista, de formação sofisticada e não um... catador de papéis?! Não sei dizer... ou sei, mas não me atrevo, pois estaria falar da pessoa que mais desconheço nesta vida: eu.

Tem fundamento a minha dúvida: em criança, eu também empurrei uma carrocinha, a catar não papéis, mas esterco seco para vender... eu trocava, no fim do processo, esterco por mortadela, e daquela que ficavam na vitrine do armazém do Seu Durval, sem refrigeração - grande, grande negócio, eu fazia! Às vezes, quando estava difícil achar esterco, eu ia buscar as "pedras de areia" ao longo das trilhas das enxurradas... batia uma na outra, e obtinha uma areia finíssima, finíssima, multicolorida, linda, linda... eu vendia a areia para as donas de casa, e... comprava mortadela!

Agora... no silêncio macio do meu carro, eu vejo este estrume de gente que bem poderia ser eu - treino em tracionar carroças de trecos não me falta - e este "concerto grosso" de Vivaldi me embala nestas reflexões.... Passo devagar... olho o pobre homem e a sua carrocinha... meus olhos se molham, minha garganta aperta, quase fecha... sem que eu tenha sequer uma pinga para destravar - seguro o choro! Não e não; pode ser óbvio para quem me lê, para quem me conhece - mas para mim, não é - por que não sou eu que vou lá? Dada a minha experiência com as carroças de trecos, eu até consigo me ver a partir de lá, do acostamento, a passar neste carro confortável, escutando um concerto de Vivaldi!

A vida, uma festa-guerra com desfecho conhecido, ainda bem, já vai se acabar!

O sentido de tudo? Ah, tenho náusea quando alguém me dá alguma resposta — que ousadia! — só que espero e quero o silêncio de olhos pensativos, interrogantes... — mais nada!

[Penas do Desterro, 28 de abril de 2010]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 28/04/2010
Reeditado em 10/04/2012
Código do texto: T2224483
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