Pas de deux
-uma intermitência, e o meio de nada. Somente três sorrisos misteriosos roçando contra a minha pele um aroma amadeirado, muito sutil, muito agudo. E os lábios crespos me arranhando a derme e me beijando levemente de todos os jeitos. Um raio azul da luz mais cheia e plena, como que sacra, como que não-humana, celestial, perfaz os sorrisos, reflete nos dentes, refrata nas línguas. E uma gargalhada esticada e calma. Um arrepio que levanta os pêlos e os inunda do ar que respiram. E três rostos amorfos. E um chapéu de tecido listrado. E duas coxas douradas, unidas, grudadas. E o desejo em forma de carne. E um sopro dos ventos alísios trazendo a tempestade – a água e o suor. E um risco no céu, feito um arco-íris. E a esperança encarnada, em forma de frase, e a sintática desmaterializada. E uma sinfonia ressoa apenas em um ouvido, e as coxas se apartam. E os dedos sensíveis tocando o rosto, tocando a boca, como frutas silvestres. E algum sentimento recôndito e tolo floresce por todo meu corpo. E todos os ossos, e músculos se unem em orquestra, quem rege é o escuro. E todos os neurônios bailam sincronizados, simetricamente, quadrados perfeitos. E quatro pupilas serenas e monocromáticas encaram-se, em pares. Sinapse, os dedos se entrelaçando; repouso, tensão entre as mãos; sinapse, as pernas tocando-se, breves; repouso, um frio invernal, antártico; sinapse, as bocas quase se tocando; repouso, os cílios quase contíguos; sinapse... repouso... sinapse... repouso... a dança dos impulsos nervosos, contraem-se, distendem-se, congelam. E cores cobrindo-me as pálpebras, deliciam-me os tons e as luzes. Delicia-me o pensar em pensar tua boca, e o nosso ballet para dois. A nossa harmonia precisa, as nossas sinapses simultâneas, seus saltos, seus giros, seus beijos. E o nosso infantil pas de deux; e a primaveril paz de deus.
- fim de uma intermitência