ESPECTADOR

E defronte ao espelho

Embaçado pelo vapor do chuveiro há pouco desligado

Não reconhecia a imagem ali refletida.

Houve ocasiões que lembranças

Como teimosas visitas que aparecem sem convidar

Retornavam sem pedir licença

E se instalavam como donos da morada

E ditavam suas normas como leis e lá ficavam.

Assim os anos se passaram

E outras vidas viu nascer e outras partir

Igual a um diário que a tudo presencia

Nada tornava público

Porque sabia que da vida não levaria nada

Só no peito a gratidão e o carinho dos amigos.

E o espelho que lhe retribuía uma imagem

Já cansada e envelhecida

Provocava a memória arquivo a todos garantido

Qual retrato na parede igualmente envelhecida.

Nada muda quando tudo muda

Nada se altera quando já alterado

E como o rio que corre e não mantém o mesmo leito

É Heráclito que retorna e nos visita.

Se Pessoa e seu guardador de rebanhos

Nessas paragens estranhas e há muito

Por seus a nós descobertos

Palavras não expressam o que se sente

E o poeta dos heterônimos igualmente poetas

Quiça queiram os que depois aqui aportaram

Nos fez o que somos porque outro não podíamos

É a sina da descoberta que se apresenta e não cede

E assim ficamos sonhadores testemunhas do tempo que vai.

E a mulher que nos ventre outro traz

Nosso igual e irmão e consangüíneo

O que podemos senão o brinde e a saudação.

É a vida que chega e renova

A nós os outros e tantos mais.

E feito o balão que ao céu sobe e sem rumo

Quem sabe outras terras e outros mares

Seu barco e sua vida ancorar?

Sim, não sei e quem sabe?

E a resposta que a ninguém é propriedade

Fica àqueles que se aventuram à escrita e pensamentos

Rabiscados no espelho embaçado e leva o que se diz

Tão logo o vapor inexiste e o espelho cristalino fica.