SOCIEDADE DOS HOMENS SEM OLHOS
Acordou bem cedinho, espreguiçou-se, como era de praxe então rezou: Pai Nosso, Ave Maria e um provérbio que o seu bisavô lhe ensinou. Vestiu sua camisa engomada, uniforme de bom trabalhador, olhou ao seu redor e não viu nada, só uma casa arrumada e sem sabor; a mulher que servia de empregada só limpava e falava do calor, das contas e da máquina estragada que lavava até mesmo o despudor da roupa do casal, que não se amava, mas que, à noite, se usava sem terror.
Cogitando estas coisas, vacilou entre a mesa forrada e o elevador, degustou o café e a torrada, e saiu pela estrada da sua dor. Esse é só mais um dia. Pensou firme. No passado, eu estive sem lugar, hoje eu tenho TV, não tenho filhos, isso é o bastante pra aceitar.
Depois de ter pagado a lotação, sufocado de gente a reclamar, desceu na mesma rua sem canção, entrou no edifício sem cantar, e logo cumprimentou pegando a mão de gente que sorria sem brilhar, que olhava sem ver o coração e que desconhecia seu azar. E sentado pro seu computador, acionou o botão pra começar, respirou tudo bem condicionado, tudo iluminado e sem lugar, sem o sol que assovia na manhã, sem sua mente sã pra perturbar.
Trabalhou todo o dia bem ligado, universo antenado, informação e, lendo outdoors, placas e faixas, frases de para-choques de caminhão, numa dessas frases veio alado o cavalo empacado em sua prisão.
Chegou logo em casa e, sem conversa, mergulhou no chuveiro com a lição, que era a própria vida que mostrava que havia algo mais além do chão, e deixou que a água fosse a sua consciência lavando a indecisão, e enxaguou toda a alma e deixou nua sua sede de paz, libertação, deixou impregnada no azulejo a sujeira de anos de cegueira, e deixou aberta a cicatriz que se abriu como nuvens de poeira, e num êxtase santo eclodiu, foi manchando o azulejo feito a cera, e mulher, feito máquina, rugiu o descaso com tudo o que fizera, e ele disse tudo o que descobriu, como foi que sentiu a primavera, o passado e tudo o que destruiu, pra viver como um vil ao lado dela, e cuspiu muito mais e explodiu, sentindo não caber naquela espera, mas não quis levar nada do que viu, tudo o que construiu era uma esfera que pesava nas costas e despiu deixando pra mulher que Deus lhe dera.
Mas rezou qualquer coisa que podia e voou como pena nas escadas, foi sangrando o feto que paria no meio da folia da algazarra, em fração de segundos já fugia e alguém perseguia sua pegada, sirenes e homens de uniformes disformes, mulheres assustadas, foi cantando e disseram ser um louco que deixou a rodovia engarrafada, e estava nu, molhado e puro, perturbando a paz. Da cidade desencantada.
Lou Gomes