Maçã na Boca da Serpente Capítulo II

Venho a ti, tu bem sabes o porquê, confessar-me. Não que creia neste sagrado ato, não que tu sejas padre, mas, talvez, se eu o fizer, o peito possa pesar menos. Poderia contar-te os fatos, porém o que desejo é mais potente, o vocábulo correto a ser usado é confissão, pois só assim há como deixar sair de minhas entranhas o que está enraizado no âmago. Prometo-te: nada ocultarei. E, como bom confidente, peço-te que emudeças durante o ato, dá-me tua sentença no fim. Não que eu a cumprirei, tenho sido indiferente ao externo há tempos, nada pessoal. Oh, quase me esqueço... Deves estar a pensar o quão adepta dos bons costumes eu sou. Pois bem, quem aqui te escreve é Caprice. Sigamos, então?

Não me olhes estes passos em falso. O mundo me fez manca, os homens cega e, estes teus olhos, bambearam-me a alma. Já não mais estou nua, e vergonha e humilhação servem-me como manto. Não um manto púrpura, digno de imperadores romanos. Sim um manto fétido, remendado, de cor plúmbea, pétrea e argêntea.

Era como se a paisagem a me cercar, transmutada no inferno, queimasse qualquer resquício de vida. O calor era tanto, mas tanto, que até os pensamentos agoniavam em cinzas. Levara a palma à fronte, retornara úmida. Andara, de janela em janela, a procura de vento. Nada. Mamãe nem levantara da cama, já deviam ser três da tarde. Papai e Vinício ainda na universidade. Derrubei-me no sofá, com um estrondo. Quando ouvi a porta do quarto de mamãe se abrindo, arrematara o livro por cima da cômoda e correra para o jardim antes mesmo de tomar consciência de meus atos.

Hoje mamãe chamou-me demônio. Não como são chamadas as endiabradas crianças, mais como o religioso chama o inimigo de seu deus. Ao erguer o punho cerrado, esse louco em alcançar-me o rosto, Vinício prostrou-se entre nós. Não! Seu suplício lhe foi indiferente, foi seu corpo que cedeu ao chão.

Mamãe ainda me persegue. E com que forças me vejo para lhe refrear? É para seu próprio bem, minha filha... Pudera eu lhe tirar da cabeça tais idéias, aí sim estaria bem. Desde que papai adoeceu, ela me aborrece, me cerca, e como se estivesse em armadilha quer abocanhar-me o livre arbítrio. Casa-te com um temente a Deus! Larga este teatro! Ah, mãe, vê o que me pedes? Queres que eu me submeta aos caprichos de um fanático. Fanático este que, provavelmente, ainda culpa Eva pelos males que afligem aos homens. Pois seria eu tão ingênua ao ponto de me livrar de uma fanática, sim, sim, sabes o quão és e não te culpo, mas como me enervo quando dizes ser a mulher o demônio, e unir-me a outro? Pões-me louca!

Pois aqui me prostro e mantenho. Perante a insanidade de mamãe, a imponência devora-me o corpo e a alma. São demônios, são demônios! Tentativas de murmúrios escalavam-lhe a garganta como se fossem mascarado consolo.

Toma-me o corpo em molde e esculpa a musa que te acorrenta ao inferno. Pois choras, gemes e gritas. Espancas-me e acalentas-me, culpas a ausência de fé que colore-me o peito. São teus demônios! São os teus! Paraíso seria que os fossem, assim, poderia eu fazer algo. Mas não o são, nem os meus nem os teus. Não há milagre que te cure, assim como orar já não mais serve, se é que o fez alguma vez.

Desmoronava-se diante de mim, seus soluços nasciam em sua garganta e ricocheteavam internamente em suas bochechas, mutilando-as. Vez ou outra seus dentes trombavam-se, tornavam os sons emitidos mais deprimentes. Mamãe dizia estar bem, Deus há de me curar! Enquanto gemia, gesticulava os gestos santos, rezando pelo perdão dos pecados que desconhecia ter cometido. Pois há fé que lhe subestime? Fé em demasia, mamãe, fé que corrói o espírito, pois tu crês em tudo que não te diz respeito. Deprimente, quão mais hei de declarar-te infortúnios? Lamento, te digo, lamento que ainda devo conhecer-te. Nada mais. Nada que nos resta e em mundo sem ofertas do mais tardar. Já roubaram-me os infortúnios, já lastimaram-me os temidos perjúrios a tua pessoa, e que me dignifique em jamais ter-te no peito. Jamais recobrir-te no corpo. Não hei de aclamar-te as máculas! Não hei de recobrar-te os sentidos! Há! Há quem tolere teus vícios sujeitos ao mundano espírito? Não tolero, não creio que seja capaz de tolerar-te. Muitos hão de concordar, a fé apaga o homem. Que o homem apague a fé! Antes de ti, vejo-me viva. Não cedo-te minha existência, conservo-a, pois. E tu? Queres que eu me dedique a ti? Às tuas loucuras? De devaneios bastam os meus, que teu deus me livre dos demais! Quieta! Quietas! Quero dormir. Quieta! Morda-te a língua, se essa teimar em recontorcer-se, dilacere-a, pois! Quieta! Pois teus sons ricocheteiam em minhas têmporas, trincam-nas, esses teus grunhidos. Quieta!

Lágrimas, não está em meu poder impedir-lhes de me percorrerem as bochechas e alcançarem os lábios, vez e outra salgando-me a língua, aproveitando-se dos fortuitos soluços. Pois, se com todas as minhas forças eu cerrasse as pálpebras, continuariam a procurar caminhos por entre os cílios.

Vinício tomara-me as mãos nas suas, após tombar-me a fronte de encontro ao peito. Acariciava-me os dedos com os seus, enquanto o queixo apoiado em meus cabelos lembrava-me de momentos atrás. Mordi a bochecha, procurando cavar no peito de meu irmão uma cova suficientemente profunda a fim de esconder-me.

- Não me chores, criança, não me chores...

- Como não? – balbuciei contra o tecido de sua camisa – Mamãe parece alegra-se apenas quando me inferniza! Pois que sou-lhe, além de sua punição? Roga-me pragas e mais pragas. Não cansa de dizer-me asneiras e mais asneiras!

- Tu sabes que ela não tem perfeito juízo.

- Oras, Vinício, nem tu acreditas nisso.

Senti por suas contrações musculares quando deu de ombros, fatigado. Vinício poderia enganar a qualquer um, enganava a papai muito bem. Mas a mim? Absolutamente. Sempre fascinei-me com a natureza e o comportamento humanos, pois fora meu irmão um dos primeiros estudos. Já decorara-lhe as feições, os trejeitos, os tons.

- Deveríamos levá-la ao médico.

- Caprice, quantas vezes já não o fizemos?

- Mas...

- Mas o quê, Caprice? Mas o quê? Queres ouvir-lhe o diagnóstico? Pois já o tens.

Soltara-me os dedos, passara os braços por debaixo de meus joelhos e costas e levantara-se, comigo no colo. Quando começou a movimentar-se, contornei-lhe o pescoço, instintivamente.

- Estás mais pesada do que me lembrara.

- Talvez, meu débil irmão, faz uns dois anos que não me tomas em teu colo.

Seus lábios me sorriram, seus olhos, contudo, apáticos. Há dois anos que os sintomas de mamãe se manifestaram.

- Lembras-te dela?

- Como assim, Caprice?

- Digo, antes disso. Lembras-te dela? A cada dia mais as memórias me abandonam. Temo que, se continuar desta maneira, logo me esquecerei de mamãe.

- Oras, Caprice, não é como se ela morresse ou algo desse aspecto.

- Crês mesmo?

Vinício pôs-se a nos rodopiar.

- Definitivamente, estás mais pesada.

Afundei-me a unha na sua nuca.

- Diabos, Caprice!

- Converso sério contigo e tu me vens com rodopios? Com brincadeiras?

Tornou a sorrir, a rodopiar.

- É por isto que gosto de ti, minha querida Caprice: tu possuis esta besta animalesca intrínseca.

Belisquei-lhe o ombro.

- Mostrar-te-ei a besta animalesca.

Não pude conter-me as gargalhadas.

Oh, Vinício nunca deveria ter de mim se apiedado e dado-me tinta e pena. Nunca deveria ter ensinado-me as letras e o inebriante som que fazem ao esfarelarem-se em papel. Pois não foi a noite criada para encobrir o poeta e a poetisa? Encobrir os íntimos gritos de paz e silêncios de angústia, permitir que o chorar da alma se traduza em palavras desconexas? Assim como o dia nos torna cativos sociais, a noite é a fuga do escravo; liberto-me das algemas e exponho-me em folhas posteriormente engavetadas. Antes da escrita a insônia perturbava-me, calejado sono corria a passos largos. Este é o remédio: pegar da pena e derramar-me, todas as noites, antes de deitar a cabeça em travesseiro.

Ansiosa eu esperava por Vinício, antes que ele abandonasse a casa a fim de retornar só de manhã, ao anoitecer. Éramos nós, sós, a rabiscar idéias e devaneios. Lia-me seus trechos inacabados com diferentes entonações, com diferentes faces. Vê, Caprice, quem lê é o estado de espírito, não os olhos. A cada vez interpreta-se algo novo. Nós, sós, éramos o suficiente. Vinício bastava-me e eu a ele, por algum tempo. Saudades desse tempo incoerente. Saudades de uma só escrivaninha compartilhada pelo poeta e pela poetisa. As palavras eram tímidas, agora desavergonhadas dançam aos meus olhos, rodam suas saias, exibem suas pernas. Agora somos eu e as libertinas, apenas.

- Caprice?

Enquanto deslizo o bico da pena a manchar o papel, meus pés a recontorcerem-se por estabilidade, ergo-me os olhos para meu irmão, ele tão quieto como se nada houvesse dito.

- Estás a escrever ainda.

Outro som mudo emana de seus lábios. É fato, enquanto ele não monopolizar-me, nada diz. Abandono à pena, pois.

- O velho dramaturgo de Lucile está morto.

O que eu deveria sentir? Não conhecera o defunto, nunca sequer vira alguma de suas peças. Nunca sequer fora ao teatro. Fora ele grande gênio do qual eu posteriormente sentiria falta?

- Tu o conhecias? Sinto muito.

- Não, não. Na verdade, o velho morreu em hora oportuna, vê? Lucile está desesperada por um novo dramaturgo e, bem, lembras da peça?

- A que escreves há meses?

A falta de tato de meu irmão surpreenderia a muitos, não duvido, mas não a mim. Talvez seja traço consangüíneo que nos une esta apatia pelo alheio. Um sorriso inocentemente malicioso tomou-lhe os lábios.

- Pois bem, terminei-a. À tarde conversei com Lucile, entreguei-lhe o manuscrito, disse-me para esperar até amanhã. Oh, Caprice, vê as maravilhas que nos faria ser eu o dramaturgo oficial? Mais um passo, poeta. Verdade, há algumas poesias dispersas pela peça, mas, que mal há nisso? Um grande escritor é munido de várias facetas, não?

- O que sei é que o grande escritor nunca há de abandonar sua musa. Pois a tua musa aqui quer de ti a seguinte promessa: hás de levar-me à estréia.

- Papai e mamãe não ficariam muito contentes com a idéia.

- Oras, papai e mamãe não ficam muito contentes com tuas saídas ao bordel.

Enquanto ponderava, levantei-me um pouco a fim de poder apertar-lhe as bochechas como se criança.

- Tu saberás o que fazer.

- Claro, claro.

- Agora, se não te importas, a inspiração acaba de retornar.

Permanecemos calados pelo resto de sua estada. O ronronar das penas a preencher o quarto, os sonhadores olhos de Vinício ansiosos pelo amanhã.

Vinício levara-me ao teatro. Arrombava-lhe o peito tamanho orgulho pela estréia de sua primogênita peça. Um braço entrelaçado ao meu, o outro livre a cumprimentar a alta sociedade, enquanto sussurrava-me os explícitos segredos da fétida nata. Divertíamo-nos com os césares sorrisos e as brutanianas apunhaladas.

- Vê, a grande encenação é além das cortinas. – riu quando flagramos Francesca a debochar de Carmine, seu ex-noivo.

Após circularmos, fomos aquém dos palcos. Estranhei o tom protetor que tingiu a face de meu irmão, o aperto quase bruto de meu braço.

- Estás a defender a cria, neanderthal?

- Oh, perdão – afrouxou-nos o nó – Este é o camarim de Rafaello – como se justificasse seu comportamento.

- Seu amigo Rafaello? Entremos, pois, quero conhecer o que divide comigo tuas atenções. Pelo que me contas, julgo-lhe personagem bastante peculiar.

- Sabes, Caprice, tu és mais que suficiente para despertar-lhe interesse. Mas tal interesse não condiz com o que tu deves buscar por parte dos homens.

- Vinício, não me conheces? Sei o que ocorre quando a fêmea interessa ao macho, temos cães em casa, não temos? Crês que desejo submeter-me a amantes ou marido? Crês, sinceramente, que possuo a carne e a mente tão fracas?

- Interpretastes-me erroneamente. Quis alertar-te da índole de meu amigo. Não o vejo companhia saudável a ti. Contudo tua bronca acalmou-me as suspeitas.

- Ótimo, ótimo, entremos então?

Batidas, porta aberta. Lá estavam os malditos olhos, diria minha supersticiosa mãe, a fitar-nos. Esperava algo diferente do rapaz esguio de íris azul e cinza. Imaginava-o rude, bruto, desengonçado, grotesco em palavras e gestos. Não se assemelhava em nada às crias típicas de bordel. Não que eu conhecesse alguma, entretanto a imaginação permite-me fazer imagens. Rafaello era, em síntese, tentador. Não por sua aparência, nada tinha em especial, além dos olhos, mas seu porte, gestos, o tom felino e majestoso de tratar as mulheres. Serpente a abocanhar a presa, hipnotizava-a antes.

- Vinício, poeta fajuto, boêmio vagal, como estás hoje, meu caro? Além de bem-acompanhado... – inspecionou-me em detalhes. Deveria sentir-me constrangida, engraçado como senti-me, ao contrário, satisfeita e ansiosa pela reação de meu irmão.

- Tira essas idéias pervertidas e incestuosas de tua mente, ator bastardo! Esta é Caprice, minha irmã. Trouxe-a a fim de avaliar a peça.

- Perdoa-me, senhorita, teu negligente irmão não contou-me de tua presença hoje à noite.

- Deverias vigiar-te a boca e os vocábulos.

Tomou-me a mão na sua, beijando-me o pulso discretamente.

- Dou-te o mesmo conselho, senhorita, deverias vigiar-te os doces lábios. Há lábios vândalos que podem querer silenciá-los.

Vinício pôs-se a sair, levando-me consigo. Antes, porém, disse a Rafaello:

- Se não fosse pela estréia daqui a alguns minutos, teu olho já estaria púrpura!

Diabos, Rafaello, dei-te eu direito para penetrar-me os pensamentos? Certeza tenho que os teus eu não assombro. Explica-me, logo, o porquê de insistires em perpetuares nesta mente? Que tens tu de fascinante? Tu não passas de um adorador de vinho, de carne. Tu não passas de um poço de vícios.

Dois meses, Rafaello, dois meses que não me respeitas nem o sono! E quando não estou a devanear contigo é Vinício a dar-me mais e mais informações. Não que seja sua intenção pôr-me obcecada, creio serem-lhes os motivos opostos. Quer-me longe de ti e, para que tal fim seja atingido, conta-me as mais pecaminosas e indecentes histórias acerca de ti. Mas não julgues mal meu irmão, seus atos são justificáveis, teme ver-me submissa a ti, a qualquer espécime masculino. Disto não duvides, tem-te lealdade. Contudo isso não o impede de cumprir seu papel fraterno.

Ao detalhar-me tuas relações com Mirabella, dava por certa minha repulsa. Embora confesse que não me foi ainda possível compreender tal relacionamento nos pormenores necessários, não há em meu seio resquício sequer desse sentimento. Dormes com ela, noite após noite, porém não apresentas objeção alguma a que ela adormeça com outras companhias? Se não te importasses com ela haveria certa lógica, mas pareceis-me tão íntimos, mais íntimos que eu e Vinício. Não digo que vos assemelhais a irmãos, qualquer laço fraterno que vos unisse desgraçaria moralmente o que se refere à cama. Íntimos como amantes, entretanto não é inerente aos amantes o ciúme? Tratas Mirabella como tua igual, concluo, pois. E de que maneira Vinício concebe que eu te repudie por isso? Vanglorio-te, Rafaello, vanglorio-te com todo o meu bom senso.

Quantas vezes nos vimos nestes dois meses? Três, três míseras vezes! Contemplei-te durante a peça, estudando-te a face. Oh, e que face! Não que sejas especialmente bonito, alguns de teus traços são capazes de até mesmo incomodar. Como teus olhos, tuas íris descombinadas. Mamãe diz que eles são coisa do demônio. Oras, concordas que o demônio tem mais o que fazer do que se preocupar com as íris dos humanos? Não que mamãe se importe com o que eu penso, crê que arderei eternamente no inferno pois blasfemo em demasia. Confia tanto em seu julgamento que já determinou-me a sina. Mas deixemos mamãe de lado. Tuas íris fascinam-me. Desejaria possuir as minhas assim, uma cinza, outra azul. E teus lábios, Rafaello, e teus lábios? São róseos e carnudos, tão diferentes dos demais lábios masculinos. Não tão róseos e carnudos a ponto de tornarem-se femininos, encaixam-se em uma bela transição. Já os teus castanhos fios em cachos desfeitos, ondulados, a adornar-te os ombros. Ah, e os teus ombros!...

Que eu cesse por aqui as observações. Não cabe a uma moça de família reparar nos contornos abaixo do pescoço de um homem.