Mal dia, miserável!!

Essa noite que não acaba! Já nem lembro mais da última aurora. Dizem que foi magnífica, com direito a seres alados, carroças e tudo. Até se podia ouvir o som de monocórdios gigantes. Nem sei se eu estava lá. Desde que meu mundo é mundo, só a noite se apresenta. Algumas vezes rezei para que viesse um ser iluminado e quente para mudar um pouco as coisas, para que trouxesse clareza aos meus pensamentos... Nunca obtive a resposta exata. Pensei, pensei, pensei... a luz não veio.

Já estou farto de tudo isso. Desses cantos de muros sempre saem gatos pardos. Se ao menos fossem limpos! Gatos imundos, que mais parecem ratos. Estão sempre vindo aqui encher minhas roupas de pêlos e pulgas, sempre lambendo minha boca enquanto durmo. Não quero mais nada disso. Que venha o dia e leve este maldito frio. Minhas pernas doem. Meu dedos doem. Minha cabeça dói.

Chove, venta, urra, trinca! Meus ouvidos já não me aguentam mais! Quero um ferro em brasas para silenciar o mundo. Meu coração bate! Que inferno! Nem eu faço o silêncio que quero! Por que diabos sou obrigado a ouvir meus próprios sons? Quero que meu coração pare de bater. Já não aguento mais ouvir esse compasso em 3/4. Quero ouvir coisas novas, como uma batida 5/6. Mas essa maldita noite não acaba. Ela e seu zumbido em compasso ternário!

Que gosto horrível de sangue! Minha língua ainda guarda o sabor do fígado acebolado da Dona Dôra. Já faz tanto tempo... E esse maldito gosto não me sai da boca. Odeio sangue! Odeio fígado, rins, tripas... Eu quero ser vazio! Será que nem isso Deus me permite? Estou tão castigado que, se fosse dado a mim o castigo de Prometeu, eu mataria a águia com os dentes e comeria meu próprio fígado pela eternidade. Maldita águia! Morra, seu urubu! Nem você é capaz de notar que já estou morto.

Lá vem a chuva. Lá vem a água. Lá vem a lama! Corre-corre... Corre! Corre! Maldita pedra. Maldito meio do caminho. Cortei meu pé.

Que venha o amanhecer, e, depois, o calor escaldante, o fedor, as nuvens, a menorréia incandescente. Quando amanhece? Já está perto? Pelo amor de Deus, anoiteça!

Gabriel Dorio
Enviado por Gabriel Dorio em 30/03/2010
Reeditado em 17/09/2015
Código do texto: T2166941
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.