PARA JOSÉ

“Sobre a memória:

“A memória é um espelho velho, com falhas no estanho e sombras paradas: há uma nuvem sobre a testa, um borrão no lugar da boca, o vazio onde os olhos deviam estar. Mudamos de posição, ladeamos a cabeça, procuramos, por meio de justaposições ou de lateralizações sucessivas dos pontos de vista, recompor uma imagem que nos seja possível reconhecer como ainda nossa, encadeável com esta que hoje temos, quase já de ontem. A memória é também uma estátua de argila. O vento passa e leva-lhe, pouco a pouco, partículas, grãos, cristais. A chuva amolece as feições, faz descair os membros, reduz o pescoço. Em cada minuto, o que era deixou de ser, e da estátua não restaria mais do que um vulto informe, uma pasta primária, se também em cada minuto não fôssemos restaurando, de memória, a memória. A estátua vai manter-se de pé, não é a mesma, mas não é outra, como o ser vivo é, em cada momento, outro e o mesmo. Por isso deveríamos perguntar-nos quem, de nós, ou se em nós, tem memória, e que memória é ela. Mais ainda: pergunto-me que inquietante memória é a que às vezes me toma de ser eu a memória que tem hoje alguém que já fui, como se ao presente fosse finalmente possível ser memória de alguém que tivesse sido. “ “(Excerto, com modificações, de um texto que publiquei alhures, não sei quando. Ah, esta memória.)”

José Saramago

in Cadernos de Lanzarote, p. 32. Companhia das Letras. 1998