SOLIDÃO EM LITÍGIO

SOLIDÃO EM LITÍGIO.

Um dia a solidão se confunde. Não sabia se ia nem se ficava, mas se permitia incomodar pessoas desacompanhadas. A solidão invade os espaços da gente sem pedir licença, sem querer saber se o dia é sábado ou segunda-feira. Confusa, dona solidão fica em cima do muro querendo atormentar a intimidade consentida de algumas pessoas e, ao mesmo tempo, querendo estabelecer litígio entre seres que estão juntos na disputa da felicidade.

Felicidade é coisa de dois. Há diversas formas de ser dois, inclusive sendo um pela pluralidade que alguns indivíduos têm dentro de si em convivência permanente com diversos “eus”... Um pouco de Deus, na ótica da santíssima trindade? Um pouco de nada, calcado na concepção de que cada um se ama e se projeta em si mesmo como se dois fosse?

Hoje é sábado! Drummond incursionou neste sentimento como ninguém, porque talvez fosse "sábado", um dos seus preferidos ou preteridos. Prefiro qualquer um, mas sei que antes do domingo, um frenesi nos toma e nos pulsa para os encontros e desencontros. Não devia ser do desencanto, mas acontece e é inevitável. Afinal, viver não prescinde o risco, porque dele advém o mistério do existir entre tantos perigos que nos cercam.

Vinícius, em seu soneto da Fidelidade, estabeleceu uma regra que todos gostam na música e na prosa cotidiana: "imortal porto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure"... Define a temporalidade de tudo, inclusive do amor em toda sua grandiosidade. De fato, a vida nasce na conjugação do amor e nele se fundamenta. Amor é amor, independente das vertentes que geralmente são estabelecidas, inclusive na poesia. Artur da Távola realça a grandeza do amor em uma forma atemporal e transcendental. Refuta que amor de pai, de filho, de amigo, de irmão, etc., é amor. O diferencial entre o amor de dois amantes é que, não havendo dimensão de consangüinidade, o sexo se estabelece sem barreiras. Independente do propósito vê o amor da dimensão surreal. Com um pouco de Távola e de Vinícius, mas se encontrando na transmutação da realidade e através dela se estabelecendo nos processos de rotina. Uma visão direta do amor em preto de branco, como se um teste fosse para a consecução do afeto.

Dona solidão não se enternece no confronto. Talvez se alimente dele, mas disfarce seus poderes pelas suposições estabelecidas pelos amantes.

"Deito ao lado do travesseiro com

meus pesadelos socados no lado vazio da cama.

Porque é sábado,

me iludo com tua volta não combinada,

pela ilusão que alimenta ausência tua.

Sombra nua sobre o lençol

insurge sorrateira feito canção em dó maior...

Dor maior da ilusão alforriada,

algemada entre o que sei de mim e

o que não sei de ti"...

Entre a vida e a não vida, di-vi-di-da a solidão se encontra. Talvez busque-se a si mesma pelo costume de nunca saber-se acompanhada. Dona solidão dilacera e mata. Talvez pior do que a morte física ela dilacera e nos fenestra aos poucos. Talvez os poetas tenham mais intimidade com ela, mas há versos perversos construídos no árduo labor de tirar leite das pedras... "(Atiraste uma pedra no peito de quem só te quis tanto bem, e quebraste um telhado, perdeste um abrigo, feriste um amigo”...) - música consubstancial na lógica do amor preto-no-branco. Amor ao alcance da mão, mas com forças nos pés, daí o chute no outro quando o desencontro bate a porta.

"Angustia e solidão, um triste adeus em cada mão, lá vai meu bloco vai só deste jeito é que ele sai"... Marcha de carnaval de Moacir Franco, extremamente cantada nos carnavais do Recife: solidão e encontro, adeus em cada mão - sintomas que dona solidão dispõe de sobra em seu trajeto.

A solidão está em conflito porque hoje é sábado.

A moça feia está contrita porque hoje é sábado.

O homem acompanhado é do babado porque hoje é sábado.

A mulher bonita acompanhada é amada porque hoje é sábado.

A alma está lavada e ensaboada porque hoje é sábado.

Os demônios estão soltos

Há cavalos alados

porque hoje é sábado...